O Estado de S.Paulo - 05/05
Paul Gauguin e André Breton viveram neste hotel em que vim parar - o pintor em 1891, o escritor em 1921. A passagem de um e outro pelo Hôtel Delambre, então Hôtel des Écoles, está registrada em duas placas de pedra nas laterais da porta de entrada. Bem faria eu de me inspirar no exemplo dos fantasmas ilustres que me precederam entre estas paredes, vestidos, suponho, com lençóis de algodão egípcio e arrastando correntes de ouro. Na impossibilidade, porém, de vir a merecer eu mesmo uma placa, seja em Paris ou Matozinhos, consolo-me na suposição mesquinha de que nem Gauguin nem Breton, para produzirem as obras que os eternizaram, terão habitado a cela de monge a que minhas esbeltas finanças me condenam. Ou será que sim? Pelo menos não devem ter tido como vizinhos, do outro lado de uma parede de estuque, esse bando de canadenses cuja fuzarca etílico-hormonal crepita madrugada adentro. Breton, não sei, mas Gauguin não trabalhava aqui; durante um tempo, dividiu ateliê nas imediações (Rue de la Grande Chaumière) com Modigliani, aquele dos pescoços intermináveis.
O diabo sabe para quem aparece. Provavelmente não havia turistas ruidosos no Hôtel des Bains, bem ao lado do meu na rue Delambre, quando em 1937 uma jovem professora do Liceu Molière chamada Simone de Beauvoir pariu ali seu primeiro romance, Quand Prime le Spirituel, só publicado em 1979. Não há placa, mas é informação segura. Na ficção, Simone primava pelo espiritual, mas na vida real já entabulara namoro-cabeça com um moço de olho torto. Como é sabido, ela e Jean-Paul Sartre nunca dividiram teto. Só vieram a coabitar no cemitério de Montparnasse, aqui pertinho - a pequena distância, aliás, de Charles Baudelaire, personagem secundário no túmulo do padrasto com quem não se dava, o general Jacques Aupick, cujas glórias, há muito esmaecidas, lá estão trombeteadas no mármore. Para compensar, em outro ponto do cemitério o poeta mereceu imponente cenotáfio, monumento funerário em que o homenageado não está. Mais adiante você topa com Julio Cortázar, Samuel Beckett e Guy de Maupassant. Em número de visitantes, nenhum deles bate Serge Gainsbourg, cuja tumba jaz praticamente enterrada em flores, papéis e tíquetes de metrô que parecem incitar o ator e compositor a mais viagens, agora sem aditivos.
Mas voltemos à rue Delambre, onde o meu hotel, hoje com três estrelas, era pouso de modesta grandeza ao tempo em que se chamava des Écoles: com seu adjetivo, o Grand Hôtel des Écoles, atual Lenox, no n.º 15, lhe fazia sombra. No quarto 32 moraram, mas não simultaneamente, Marcel Duchamp e o fotógrafo Man Ray. Por lá andou também, ainda obscuro mas já libertino, o romancista Henry Miller, com sua musa June.
No 15 da rue Delambre, viveu e trabalhou de 1917 a 1924 o pintor japonês Foujita, com sua franja engomada cor de shoyu. O Studio Hôtel, no 9, esplêndido art déco com três andares, de 1926, foi e segue sendo reduto de artistas, não necessariamente plásticos. Isadora Duncan morou num daqueles ateliês, cujo generoso pé-direito, imagino, permitiria a bailarinos que nem ela decolar nos mais audaciosos grands jetés; mas por pouco tempo, pois em 1927, estando em Nice, Isadora teve aquela má ideia de passear de carro conversível com uma longa echarpe, a qual, sabemos todos, desfraldada pelo vento, enroscou-se numa das rodas do veículo, apagando a grande estrela por enforcamento.
Bem em frente ao Studio Hôtel está o restaurante Auberge de Venise, instalado onde existiu o Dingo - o bar de que falei aqui na semana passada, no qual Ernest Hemingway e Scott Fitzgerald teriam se conhecido numa noite de 1925, conforme conta o primeiro em Paris É Uma Festa. Ainda não puseram placa. Em má hora fui enveredar por essa história, pois desde então há quem me acuse de ter chamado o ficcionista de mentiroso, de reduzir a relação dos dois a um descabido Fla-Flu. Não me leve a mal, portanto, me leve a bem, se voltar ao assunto num dos próximos domingos, pois tenho mais lenha para essa fogueira.
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