O Estado de S.Paulo - 05/05
Para quem acompanha as últimas contorções políticas nas Américas, haja coração. Só em abril, houve atentados contra a Constituição (Bolívia), choque de poderes (Argentina e Brasil), confusão no tribunal (Guatemala) e pancadaria parlamentar (Venezuela). Claro, as situações variam. Cada caudilho no seu galho. Em comum, todos respondem às pressões da democracia, tendência crescente do Caribe às geleiras. O divisor de águas é a forma como cada Estado administra seus conflitos e o saldo é que define a força, ou a fragilidade, das respectivas instituições nacionais.
Considere Guatemala e Venezuela, duas nações onde a estabilidade política está sendo posta à prova. Guardadas as proporções e peculiaridades, a diferença entre as duas nações é o retrato da América Latina contemporânea, região onde liberdades individuais, direitos humanos e livre expressão estão em obras continentais, mas longe de estarem garantidos.
Desde as eleições de 14 de abril, quando Nicolás Maduro emergiu vitorioso na Venezuela, por estreitíssima margem de votos, o chavismo esforça-se para consolidar sua autoridade herdada. Mas enquanto Hugo Chávez, habilidoso e com lábia afiada, tocava o país como uma flauta, seus herdeiros esperneiam. Houve quem imaginasse uma distensão após as eleições ultrapolarizadas. Presidente, Maduro estenderia a mão magnânima aos vencidos e até admitira a recontagem completa dos votos. Se confiança tivesse nos resultado, nada lhe custaria.
Aconteceu o contrário. O Conselho Nacional Eleitoral, recheado de chavistas, concordou em realizar uma auditoria parcial do sufrágio, mas descartou a possibilidade de uma recontagem e fez vista grossa à cascata de irregularidades e fraudes (seriam 3200 ao todo) alegadas pela oposição.
Vale-tudo. Em vez de incentivar o diálogo, Maduro apelou para a truculência, convertendo um protesto pacífico no plenário da Assembleia Nacional em luta de vale-tudo.
Filmagens da pancadaria, em que guarda-costas chavistas, vestindo as cores da bandeira nacional, rodaram o mundo. A deputada María Corina Machado levou chutes e socos. Seu colega, Júlio Borges, teve seu rosto desfigurado. Durante toda a sessão, o presidente da Assembleia, Diosdado Cabello, ria. Não foram poucos que, frente a tamanha inabilidade, profetizaram vida curta para o chavismo versão 2.0.
Se a revolução bolivariana pena para renovar sua franquia autoritária, Guatemala ensaia surpreendentes sinais de vigor democrático. Muitas vezes a força e valor de um país brilha justamente em momentos de crise. Foi assim na Cidade de Guatemala, onde o generalíssimo Efraín Ríos Montt, após anos de esquiva legal, está sendo julgado por crimes de guerra. Ele governou apenas por 17 meses, mas deixou sua marca na sangrenta guerra civil guatemalteca: 1771 mortos na comunidade indígena maia, supostamente por tropas sob seu comando.
Ríos Montt define a repressão como defesa legítima da pátria contra o perigo comunista. Um relatório independente a chamou de genocídio. Num país onde os militares sempre tiveram o patrocínio e a bênção de uma musculosa elite, o processo começou sob uma espessa nuvem de dúvida. Os advogados de defesa bem que tentaram, lançando uma centena de manobras para paralisar o processo.
Mas a magistrada Yazmin Barrios resistiu e ainda sobreviveu à intervenção ardilosa de uma juíza de primeira instância, que quase anulou todo o processo. Nem mesmo as objeções do presidente atual, o general Otto Pérez Molina, que lutara sob o comando de Ríos Montt, conseguiram demovê-la.
Na semana passada, a Corte Constitucional mandou a juíza prosseguir e logo mais o julgamento pode chegar ao fim. É a primeira vez que um ex-chefe de Estado é acusado de genocídio no próprio país. Se Ríos Montt será condenado, ninguém sabe. Mas o simples fato de que é réu, obrigado a responder por seus atos num tribunal de justiça, já é um salto de qualidade na vida política de Guatemala - e um claro sinal para a anuviada democracia latino-americana.
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