Um cidadão rico e mal informado a meu respeito pediu-me um conselho: o que deveria fazer para perder dinheiro rapidamente. Motivo: ele se apavorou com alguns comentários apocalípticos que leu por aí e passou a temer que uma reviravolta político-social o surpreenda com os talões de cheques dos bancos suíços, além de outros investimentos nada patrióticos.
Minha primeira sugestão foi no sentido de que me desse o dinheiro à vista, compactamente. Correria eu, de bom grado, os riscos provenientes, embora não mais entrasse no reino dos céus nem passasse pelo buraco de uma agulha --conforme rezam as Santas Escrituras.
A sugestão foi recusada. O homem não dá esmolas. Não tem nenhum interesse em que eu passe ou não passe pelo buraco das agulhas. Ele deseja perder dinheiro fazendo jus ao trabalho, suando o rosto. Exige ideias.
Ficou de pensar na segunda sugestão que lhe dei: a de criar, em nível nacional ou continental um curso gratuito de cretinice por correspondência. Numa época em que os cretinos já nascem feitos e embalados, um curso desses seria o caminho mais prático para a falência.
Evidente que não dei a sugestão de graça. Impus a natural condição de eu próprio orientar o curso, mediante uma remuneração à altura do empreendimento.
Preferi não entrar em detalhes. Limitei-me a esboçar o plano e sua pouca rentabilidade. Ele me implorou que lhe mandasse um e-mail apontando meios e modos de se localizar o cretino em potência ou em ato.
Redigido o e-mail, verifiquei que o esboço tem uma vantagem suplementar, a de servir igualmente para ambos os sexos e até para o terceiro. Resultou num texto transcendental. E comecemos justamente pelo transcendental:
- O cretino, sempre que puder, e mesmo quando não puder, dirá que a coisa --qualquer coisa-- é transcendental.
- Quando interrogado sobre seu compositor predileto, o cretino dirá com modéstia: Cartola. Apesar de apreciar Cartola, é importante que o cretino dê provas de amplidão espiritual e moral, citando também Bach e Frescobaldi.
- O cretino será adepto dos blogs, sites, das pesquisas de mercado, do amor gratificante, da formação de uma boa imagem, do diálogo nada ideológico e da globalização dos resultados.
- O cretino será otimista, acreditará no século 21 e denegrirá a obra musical do Tiririca. Preferirá o cinema de Spielberg e os curtas do cinema baiano, aceitando a experiência do "besteirol", desde que em cores. Mas assistirá às escondidas as comédias do canal Sony e os desenhos animados japoneses.
- O cretino repudiará o fumo, as carnes vermelhas, os refrigerantes que não sejam diet, as mulheres que pintam os olhos e usam saias justas.
- Raspará e deixará crescer a barba de tempos em tempos, considerará o rock mais científico do que a teoria do quantum e dirá duas vezes por dia: "Depois de Duchamp, só Hélio Oiticica!". A frase é tida como profunda, moderna e, até certo ponto, patriótica.
- O cretino estará preocupado com o retorno de Hong Kong ao domínio da China, proclamará a iminente decadência da civilização judaico-cristã e, nas horas vagas, prometerá que um dia emigrará para Papua-Nova Guiné.
- Duas vezes por dia, às vezes três, o cretino pensará que quem estava certo era o Hare Krishna.
- Nos momentos de sufoco, recorrerá aos florais de Bach (não confundir com o Johann Sebastian) e às ervas do Santo Daime.
- O cretino desprezará a família e os hábitos de higiene domésticos. Dirá que só os banqueiros tomam banho para melhor tomarem o dinheiro alheio, e que só as prostitutas, por motivos operacionais, escovam os dentes. Até o dia em que se transformar em bancário necessitado de comer todos os dias à própria custa.
- Quando indagado sobre o seu poeta preferido, o cretino responderá com desdém: "Drummond, logicamente". A cretinice não está em gostar de Drummond, mas no "logicamente" --o que é lógico.
- E, com tanta lógica, sejamos lógicos: o cretino é um santo às avessas, que precisa apenas de sabão e cartilha para se transformar num sujeito aproveitável, digno de ser animador cultural, embaixador em organismos internacionais, diretor de carteira exterior de um banco em vias de falência, assessor de organismos não-governamentais e cronista.
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