Num regime baseado no equilíbrio entre os Poderes - Executivo, Legislativo e Judiciário - teoricamente o mais democrático dos três deveria ser o Legislativo. Sobre a Constituição norte-americana, diziam alguns teóricos da época que nela o presidente seria o elemento monárquico, por ser um só, embora eleito; o Judiciário, o aristocrático, composto que é pelos mais capazes e formado por cooptação; e o Poder Legislativo, o democrático, representando a diversidade de ideias do povo. Não é por acaso que o Legislativo é o único Poder que, por natureza, precisa ter representantes da oposição. Mas tudo isso, teoricamente.
Na prática, basta colocar uma questão: Blairo Maggi se sustentaria como ministro do Meio Ambiente num governo do PT ou do PSDB? Improvável. E Marcos Feliciano chegaria a ministro dos Direitos Humanos, sob qualquer um desses partidos? Impossível. Então, como é que o Senado e a Câmara, que - sempre teoricamente - deveriam escutar de perto a opinião pública, elegem para dirigir essas áreas pessoas que jamais ocupariam, no Executivo, posto correspondente?
O Legislativo se importa pouco com a opinião pública. Tivemos um sinal disso quando o Senado elegeu Renan Calheiros seu presidente, apesar de contestado pela sociedade: um abaixo-assinado contra ele alcançou, em poucos dias, 1,6 milhão de assinaturas.
Por que o Poder em tese mais democrático se interessa tão pouco pelo que o povo pensa?
Vemos um esvaziamento do Legislativo. Mas minha tese é que é sobretudo um auto-esvaziamento. É comum se denunciar a invasão, pelo Executivo e agora pelo Judiciário, das prerrogativas das Casas de leis. É fato que as medidas provisórias assinadas pela presidência da República dominam a agenda legislativa, pelo menos em relevância. Mas isso não aconteceria se as duas Casas mostrassem que estão fazendo coisas importantes pelo País.
A principal responsabilidade para que o Legislativo tenha o peso que precisa ter é dele próprio. Não adianta culpar o Executivo, porque chamou para si a atividade de legislar - ou o Judiciário, porque se mete em questões interna corporis - quando o próprio Legislativo descuida de sua importante missão. Esse descaso consigo, e com os votos dos brasileiros que o elegeram para representar sua diversidade, suas divergências, se expressa quando ele indica para cargos de direção pessoas que conseguem rejeição significativa logo nas áreas que estariam dirigindo.
O pior é que as comissões em questão são justamente as de maior conteúdo ético, meio ambiente e direitos humanos. (Poderíamos acrescentar as da igualdade racial e dos direitos da mulher - mas a missão delas, que é assegurar a igualdade étnica e de gênero, é temporária, deve se completar em alguns anos). Já o meio ambiente e os direitos humanos definem lutas sem fim, e a finalidade dessas lutas. Definem o centro do que pode ser a ética pública. Não seria exagero dizer que são elas que dão sentido global à ação de governo. Nosso mundo entrou para valer nos direitos humanos. As relações entre nós são cada vez mais discutidas nos termos deles. Incluem direitos políticos, civis e cada vez outros novos, inclusive o de ser respeitado até na vida privada. As grandes questões sociais da atualidade se expressam na linguagem dos direitos do homem. A redução da miséria, querida da esquerda, é um exemplo cabal disso. O combate à corrupção, bordão da direita, outro. Se o parlamento amesquinha as comissões que tratam dos fins da ação política, deixa os meios sem rumo, sem sentido.
O meio ambiente trata das relações que mantemos com a esfera da vida, da qual fazemos parte. A vida se tornou valor importante. Vejam dois exemplos sem nexo entre si: primeiro, o declínio da pena de morte no mundo; segundo, a valorização da biodiversidade como fator científico, cultural e econômico. Assim, o "bios" ou vida é o eixo para desenvolver a economia futura, e os direitos, o fundamento para tornar justas as relações humanas. E tudo isso anda junto.
Eis o que foi desdenhado pelos senadores, ao escolherem o presidente da comissão do Meio Ambiente, e pelos deputados, ao elegerem o presidente da comissão de Direitos Humanos. Colocaram-se frontalmente contra o que é mais carregado de futuro em nosso tempo. Optaram decididamente pelo retrocesso.
Então, não é o Congresso que nos protege de desmandos do Executivo, como sucedeu por exemplo na era Collor. É mais frequente o Executivo nos proteger de erros do Legislativo. No ano passado, foi o caso do Código Florestal, outra escolha do Congresso pela vantagem imediata de poucos, contra o bem comum a longo prazo. Isso tudo é, obviamente, muito ruim. Não desconheço a legitimidade de quem é eleito para a presidência da República. É a única eleição em que o voto de cada brasileiro tem o mesmo peso. Mas lastimo que uma única pessoa, investida já de tantos poderes, tenha que corrigir erros do poder que deveria ser o mais nobre segundo a Constituição. O certo seria o inverso.
Quem responde por isso? Antes de mais nada, parece ser o PMDB. Foi ele quem impôs Calheiros e, agora, o pastor Feliciano. O PT, embora seus deputados se recusassem a votar em Feliciano, aceitou - enquanto partido - a entrega dos direitos humanos a alguém com seu histórico. Já o PSDB não quis, quando pôde, enfrentar essas escolhas; basta ver que não votou, para a presidência do Senado, contra Calheiros, no senador Pedro Taques, homem que tem forte biografia no combate ético. Mas, só para concluir: ninguém sonhe com o parlamentarismo no Brasil, enquanto o Congresso não mostrar que merece ter mais poder do que já tem.
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