O ESTADO DE S. PAULO - 17/03
Até quando a mistificação resistirá ao ciclo da transparência que a tecnologia inaugura em muitas frentes do cotidiano? Não chegará o momento em que o ser humano, por mais esforço que faça para encobrir a verdade, será impelido, pelo apuro de aparatos tecnológicos, a pôr os pingos nos is? Episódios da esfera criminal, aqui e alhures, têm dado vazão à tese de que o caminho da verdade, sempre muito estreito ao longo da História, ganha amplitude na modernidade sob o empuxo de engenhosa estrutura que abriga técnicas sofisticadas de investigação, máquinas que flagram o movimento nas ruas, retórica mais científica de operadores do Direito para desmontar versões e hipóteses, tudo convergindo para desvendar fatos polêmicos.
O goleiro Bruno, depois de negar por bom tempo, acabou admitindo ter participado do episódio que culminou com a morte de Eliza Samúdio. Noutro caso, vestígios de alga descobertos por um biólogo no sapato do ex-policial e advogado Mizael Bispo foram usados para comprovar que o indiciado esteve na represa onde foi encontrada sua ex-namorada Mércia Nakashima. Um gol da tecnologia.
Dedos de silicone com impressão digital de médicos e enfermeiros, usados para fraudar o ponto eletrônico de um hospital público em São Paulo, foram flagrados pela polícia. Neste caso, o tiro da tecnologia saiu pela culatra.
Chamou a atenção nesses episódios de ampla repercussão o emprego da tecnologia, de um lado, como ferramenta para descobrir a verdade e, de outro, para encobri-la. A alga e o silicone se apresentaram como anverso e reverso da tecnologia que começa a balizar costumes e práticas. Dos eventos criminais acima mencionados se pinça a hipótese de que o uso de ferramentas tecnológicas tanto pode contribuir para pavimentar os caminhos do Direito, iluminar o altar da Justiça e arejar os espaços da administração pública como servir de escudo a criminosos.
Questão intrigante: por que tem aumentado a criminalidade, quando se sabe que a lupa é hoje mais calibrada? Hipótese razoável comportar fatores como deterioração nos padrões de vida das margens, conflitos provocados por gangues, assassinatos cometidos por grupos paramili- tares (como no passado em São Paulo e no Rio de Janeiro), enfim, clima generalizado de insatisfação. Mas não é esse o caso. A paisagem, mesmo exibindo buracos nas frentes da saúde, educação e segurança, não chegou a um nível capaz de produzir rasgos de monta no tecido social.
Se nos fixarmos no hilário caso dos dedos de silicone, podemos enxergar outra possibilidade: o ilícito parece ter ligação com o baú cultural, precisamente com a gaveta que guarda traços do caráter nacional, como engenhosidade, criatividade, matreirice, vivacidade ou, como se costuma dizer, o jeitinho brasileiro. Ora, à primeira vista o ponto eletrônico seria barreira intransponível para feitores de maracutaias. Como sair da enrascada? Manipulando a química do silicone para tirar a impressão digital de profissionais de estabelecimentos públicos, pagando um pedágio ao responsável pelo sistema e, pimba, passando os dedinhos no aparelho. Equação final: médicos que deviam dar cinco plantões por mês acabavam trabalhando só em um. Eis aí a sacada do jeitinho, que jamais tira férias.
Vez ou outra.ele aparece malajambrado, nivelado por baixo. Basta ver degustações apressadas de bolachas e chocolates em corredores de supermercados, que acabam com os "surrupiadores" tendo de assistir à sua estripulia em vídeos gravados.
Bem arrumado, o jeitinho mostra a cara no andar mais elevado. Por exemplo, quando serve para arrumar contas públicas e maquiar metas fiscais. Guido Mantega, ministro da Fazenda, pediu ao prefeito Fernando Haddad, de São Paulo, que adiasse o reajuste de passagens, no início do ano. Maneira de aliviar o índice de inflação. A maquinação envolveu outras manobras, como o abatimento dos investimentos realizados no PAC e o resgate de R$ 24bilhões do Fundo Soberano do Brasil para cumprir a meta de superávit primário de 3,1%.
O jeitinho é uma faceta do caráter brasileiro, usado como chave para abrir o cadeado da burocracia, ou como manobra para fugir ao formalismo, de ranço bacharelista, que se deixa ver na pletora de leis, decretos, medidas, portarias, regulamentações. Alguns imaginam que o cobertor legalista é capaz de cobrir nossa complexa e mestiça formação cultural. Ademais, como lembra Roberto DaMatta, o "jeitinho se confunde com corrupção e é transgressão, porque ela desiguala o que deveria ser obrigatoriamente tratado com igualdade". Daí a necessidade de combater a persistência do estilo aristocrático de lidar com a lei, que, segundo o antropólogo, "induz o chefe, o diretor, o dono, o patrão, o governador, o presidente a passar por cima da lei" porque dela se acham donos. Por isso o bordão continua a fazer eco: "Todos são iguais perante a lei, mas a lei não é igual para todos".
De tão enraizado, o jeitinho acaba colaborando para a formação do estado de anomia, um território dominado pela desordem. Veja-se o estacionamento em vagas para pessoas idosas e com deficiência. Ou as faixas para pedestres e bicicletas. A desmoralização escancara-se avista de todos.
O amortecimento social chega a ponto de a barbárie se espalhar por ambientes que, por natureza, deveriam ser exemplos de grandes cuidados. Um hospital, por exemplo. De seus profissionais se espera zelo pela vida. Daí a perplexidade ante a monstruosidade que teria sido perpetrada num hospital evangélico de Curitiba, onde uma médica é acusada de ter mandado desligar aparelhos de pacientes. A se confirmar a denúncia, estamos diante de uma "técnica de alto impacto" para "desentulhar" uma UTI e, assim, fazer correr a fila num corredor que mais se assemelha ao da morte.
Baixem-se as cortinas com o barão de Montesquieu espiando a cena e proclamando: "Parece-me que não há povo que não tenha sua crueldade particular". No nosso caso, com um jeitinho providencial.
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