O GLOBO - 06/03
O Eike Batista quer tirar proveito daquilo que a Lota previu: a ‘extrema leviandade dos poderes públicos’
Senhor prefeito do Rio de Janeiro,
Escrevo-lhe com autoridade: fui eu quem fiz o Aterro do Flamengo. Se não fosse a maluca da Lota Macedo Soares, miúdo vulcão de amor à cidade, aquilo seria um carrascal, parecido com as avenidas marginais dos rios de São Paulo. Foi ela quem concebeu a maravilha e eu quem pedi ao Instituto do Patrimônio Histórico, em 1964, que tombasse o parque. Tombado, não pode ter edificações adicionais que comprometam o seu espírito de área pública.
Aquela terra é do povo carioca. No governo do general Figueiredo, numa das tenebrosas transações da ditadura que ajudei a criar, ele transferiu a posse da área da Marina para a prefeitura do Rio e esta, concedeu-a a um grupo privado. Em bom português: surrupiaram um pedaço do parque. (De vez em quando vejo o Figueiredo por aqui. A Lota já tentou bater nele, mas o sujeito só conversa com cavalos.)
A “extrema leviandade” dos poderes públicos transformou a área da Marina num mafuá e agora o filho do Eliezer Batista, a respeito de quem nada digo, porque não se pode contar aí o que se ouve por cá, anuncia que pretende revitalizá-la.
Quer construir um shopping center (50 lojas), um estacionamento (600 vagas) e um centro de convenções com capacidade para 900 pessoas anexos ao Hotel Glória, que é dele. Sei da extensão dos poderes do moço e lastimo que o senhor esteja fora dessa discussão. (Sei também que circula com assessores que carregam numa sacola o projeto do doutor, defendendo-o.) O Iphan de Brasília teria dado um sinal verde preliminar ao projeto. A Lota, com sua fúria habitual, não entende como a presidente do Instituto, Jurema Machado, deixou a bola passar, pois numa reunião, há anos, lembrou que as obras, mesmo abaixo do nível do chão, poderiam impactar a intensidade do uso do parque. Há mais de vinte anos, conselheiros do Iphan usam a palavra “privatização” para condenar a velhacaria. Eu não gosto disso, porque tenho horror ao PT. O que não não devemos aceitar é que se tome ao povo um espaço que é dele, transformando-o num empreendimento comercial. O senhor sabe que o Rio precisa de centros de convenções. Sabe também que há um espaço reservado ao lado da estação da Leopoldina exatamente para isso. Sabe mais: que iniciativas desse tipo estimulam a revitalização de áreas degradadas, como fez Nova York com o Javits Center. O Aterro não está degradado, degradados estão os interesses que degradam-no.
O filho do Eliezer diz que fez um concurso internacional de arquitetura para escolher o projeto. O senhor acredita? Se o Iphan não defende o patrimônio da cidade, o senhor deve protegê-la. Basta zerar o velho cambalacho. Se o moço quer fazer uma marina, pode juntar-se à prefeitura. Esquece o centro de convenções, joga fora o estacionamento e põe as lojas no Hotel Glória. Peçamos a arquitetos de todo o mundo uma marina simples, pública.
Os mafuás erguidos no parque, e são muitos, nasceram do interesse predador de empresários amigos de presidentes, governadores e prefeitos. Eles são apenas espertos. Responsabilizá-los pela nossa leviandade é uma injustiça. Vá à luta. Defenda o parque que dei à cidade.
Saudações de um governante que amou o Rio, e é visto assim, mesmo por aqueles que o chamavam de Corvo.
Carlos Lacerda
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