O Estado de S.Paulo - 13/02
Nesta vida todo mundo, querendo ou não, é pautado. Todos somos levados, obrigados, arrolados ou dirigidos a fazer muita coisa. Algumas, impossíveis, como não mentir ou ser pusilânime. No caso do jornal, temos que escrever; no caso da vida, de seguir alguma regra ou viver com ou sem o bom senso.
Os planos para nossas vidas existem antes do nosso aparecimento no mundo. Antes do nosso nascimento, pai e mãe tinham expectativas fulminantes em relação às nossas vidas. Nossas pautas existenciais são os projetos e esquemas que figuram na nossa sociedade e cultura: instruções do tipo como comer, vestir-se, limpar-se e dormir - caminhos simbólicos e reais a serem necessária e precisamente percorridos como a escolha de certas profissões e valores religiosos e políticos; rituais de crise de vida ou de passagem celebrados em nossa honra ou para os outros, os quais temos de - querendo ou não - acompanhar. Do nascimento até a morte, seguimos esquemas precisos e implacáveis e, mesmo depois de termos partido, continuamos a segui-los, porque não há sociedade que abandone seus mortos.
As festas nos pautam coletivamente. Antigamente, como ritos obrigatórios e hoje, como feriados que nos permitem a evasão. Tal experiência acaba de ocorrer com o carnaval, que terminou ontem e, como tenho a obrigação de escrever na quarta-feira, todo ano eu tenho uma pauta suculenta sobre o que escrever: o carnaval e seus arredores que são densos, fartos, curiosos e inflamados de símbolos e textos.
As cinzas são a consumação do fogo. O fogo é sinal de vida ativa que passa de brasa a cinza. O pó para o qual tudo tende. A entropia que sinaliza o desgaste final de qualquer forma ou armadura em fluxo.
Todo ano tem carnaval que é metaforicamente fogo e que termina metonimiamente na Quarta-Feira de Cinzas. A repetição fala de algo planificado e anunciado. As celebrações são repetições que extinguem o tempo, ou pelo menos tentam lutar contra ele, como ocorre nas músicas e dramas quando o palhaço cai sempre no mesmo lugar. A mesma festa no mesmo país numa mesma época promove um sentimento único de dizer quem somos. Tudo passou e mudou, menos o momento da festa. Até mesmo a festa também mudou - seja o truísmo boboca - mas continua sendo a mesma festa. No carnaval, como sabemos, tudo cabe porque tudo é possível na celebração daquilo que não deve ser levado a sério, mas que é uma das instituições mais graves do Brasil. Aceitamos incompetências e malandragens políticas, mas não aceitamos quem ofenda o carnaval. Mudamos algumas vezes o regime e tem gente trabalhando ferozmente para mudá-lo novamente. Mas não há uma proposta para mudar o carnaval. Aliás, falar em suprimi-lo promoveria uma revolução.
Estou, pois, reiterando essa alternância de fogo com cinza, de carne com peixe, de riso com seriedade, de alegria com circunspecção, de exagero com controle que nós realizamos todo ano como carnaval sem saber de todas as suas implicações.
Tudo mudou e tudo continua na mesma. Meus amigos mais politizados estão saindo em blocos e dizem que estão revivendo um carnaval de rua que eu bem conheci. Os blocos são sintomáticos desse desejo insaciável de pertencer a um grupo fechado? Ou são, como no meu tempo, uma prova do desejo igualmente inextinguível de singularizar-se contra um outro grupo da mesma magnitude social, como ocorre nos grandes desfiles?
Do mesmo modo, num mundo de dinheiro racionalmente acumulado, de trabalho e poupança, onde o futuro tem que ser comprado ou se transforma em divida, o carnaval leva a gastar e apresenta uma estética de exagero e luxo, como definiu com propriedade Joãozinho Trinta. Rico gosta de pobreza, pobre adora luxo. Não vemos riqueza no carnaval. Vemos o luxo do desvalido vestido de deus ou deusa, espalhando riso e alegria. Um jornalista um dia me perguntou: como é que pode haver festa tão rica num país tão pobre?
Eu disse: precisamente por isso! Boas cinzas.
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