Um debate essencial
MARCO AURÉLIO MELLO
O GLOBO - 15/04/11
A Constituição Federal, em verdadeiro princípio e de forma pedagógica, preceitua ser "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão" (artigo 227). As ações que caracterizam o bullying afetam bens juridicamente resguardados. De início, tem-se a violação ao princípio da dignidade da pessoa humana - artigo 1º, inciso III, da Constituição. A indeterminação do conceito não impede o consenso: revela-se conteúdo mínimo da dignidade a proteção do indivíduo contra qualquer tipo de violência, que, no extremo, pode significar a tortura. A interdição à tortura e ao tratamento desumano ou degradante, presente no artigo 5º, inciso III, também é um importante vetor contrário à prática do bullying.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos - ONU - afasta o tratamento cruel, desumano ou degradante ao ser humano. A Convenção sobre os Direitos da Criança impõe ao Estado e aos pais, tutores ou outras pessoas responsáveis o dever de assegurar o bem-estar da criança, cabendo inclusive a adoção de medidas administrativas e legislativas adequadas. A Convenção Interamericana de Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica - prevê o direito à integridade pessoal, compreendendo os aspectos físico, psíquico e moral. A vítima de bullying poderá até mesmo recorrer ao sistema interamericano de direitos humanos.
Há a possibilidade de tutela jurídica penal. Não existe um tipo específico, mas a conduta hostil pode revelar crime contra a honra, racismo, lesão corporal ou estupro. Praticada por menor, será considerada ato infracional, atraindo medida socioeducativa.
É também inequívoca a viabilidade de responsabilização civil - artigos 186 e 927 do Código Civil. O nexo causal e a prova do dano são questões a serem demonstradas no caso concreto. Pode-se responsabilizar os pais pela conduta, artigos 932, inciso II, e 933 do Código Civil. Cuidando-se de estabelecimentos escolares, a responsabilidade, também objetiva, é extraída do artigo 932, inciso IV, do mesmo diploma.
O projeto de lei nº 228/2010, em tramitação no Senado Federal, versa a inclusão de dispositivo na lei nº 9.394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação - para assegurar a adoção de medidas de prevenção e combate a atos de intimidação e agressão. Na Câmara dos Deputados, há sete projetos de lei em tramitação para estabelecer ações que visem a coibir o bullying. Destaca-se o de nº 6.935/2010, que criminaliza a prática.
A matéria, ainda não regulamentada por legislação federal, é objeto de normas municipais e estaduais. Em São Paulo, a Câmara Municipal editou a lei nº 14.957/2009, determinando "incluir no projeto pedagógico medidas de conscientização, prevenção e combate ao bullying" (artigo 1º). No mesmo sentido é a lei nº 5.089/2009, do município do Rio de Janeiro. Segundo a lei nº 5.824/2010, do Estado do Rio de Janeiro, além dos estabelecimentos de saúde, os de ensino também ficam obrigados a notificar à autoridade policial e ao Conselho Tutelar qualquer caso de violência contra a criança e o adolescente. O Estado de Santa Catarina foi o pioneiro na normatização do tema, considerada a lei nº 14.651, de 12 de janeiro de 2009.
O crescimento do número de ocorrências envolvendo o bullying e as gravíssimas consequências - tanto em termos psicológicos e sociais, quanto jurídicos - estão a revelar a valia da ampla discussão sobre o tema, providência que se impõe, a fim de permitir à atual e às futuras gerações o exercício irrestrito da cidadania.
MARCO AURÉLIO MELLO é ministro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral e presidente do Instituto Metropolitano de Altos Estudos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário