domingo, março 17, 2013

O Brasil da chibata - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA
"Nunca se ouviu dizer, por exemplo, que Madre Teresa de Calcutá fizesse "o diabo" em favor de suas obras de caridade. Pelo entendimento comum, fazer o diabo significa estar disposto a qualquer coisa, por pior que seja"

Roga-se às altas autoridades brasileiras, mais uma vez, a gentileza de responderem às perguntas apresentadas a seguir. É possível que o público leitor gostasse de fazê-las diretamente, mas não pode; cede-se a ele, a título de colaboração, o espaço desta coluna.

Poderia a presidente Dilma Rousseff ter a bondade de explicar, com um mínimo de clareza, o que é "fazer o diabo"? Dilma disse há pouco que nas campanhas eleitorais é permitido fazer exatamente isso, "o diabo", mas não deu nenhuma informação sobre os atos concretos que os candidatos, a começar por ela própria, estão autorizados a cometer. O que vale? O que não vale? Coisa do bem não deve ser. Nunca se ouviu dizer, por exemplo, que Madre Teresa de Calcutá fizesse "o diabo" em favor de suas obras de caridade. Pelo entendimento comum, fazer o diabo significa estar disposto a qualquer coisa, por pior que seja, para conseguir algo. É isso?

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, acha que tem, sim ou não. o direito de chamar um cidadão de "palhaço" e mandá-lo "chafurdar na lama"? Coragem, ministro: sim ou não? Dizer essas coisas, em público, não é crime de injúria? Ou presidentes do STF estão desobrigados de obedecer ao artigo 140 do Código Penal Brasileiro?

Colocar um fotógrafo do Instituto Lula, entidade privada, a bordo do avião presidencial que levou Dilma Rousseff (e o próprio Lula) aos funerais do coronel Hugo Chávez na Venezuela, e apresentar o rapaz como "intérprete" da comitiva, não é um delito de falsificação? Intérprete ele não é: como acaba de informar em VEJA o redator-chefe Lauro Jardim, sua ocupação é tirar fotos para a coleção pessoal do ex-presidente. Há outras dúvidas. Será que Dilma não entende nada de espanhol? Não há nenhum intérprete de verdade entre mais de 1 milhão de funcionários do governo federal? Privatizar assentos a bordo do Aerodilma, para o Instituto Lula economizar um dinheirinho, já é um ato permitido pela doutrina de "fazer o diabo"?

O que o dr. Gilberto Carvalho, que tem no seu cartão de visita o título de "ministro-chefe da Secretaria- Geral da Presidência da República", quer dizer quando afirma, como fez há pouco, que "o bicho vai pegar""? Que bicho é esse? Pertence ao Patrimônio da União? Ele vai pegar quem? Já foi solto, por exemplo, contra a blogueira cubana Yoani Sánchez, que bandos de delinqüentes a serviço do governo atacaram em sua recente passagem pelo Brasil? Tem cabimento o ministro-chefe (a propósito: haveria algum ministro que não é chefe?) usar em público linguagem de bandido? Por que será que tanta história esquisita (a de Yoani é apenas a última de uma longa série) começa, passa ou termina na sala do dr. Gilberto?

Quais os nomes da "meia dúzia de famílias poderosas" que, segundo o presidente do PT, deputado Rui Falcão, decidem "o que o nosso povo pode ler, ouvir e assistir"? Daria para o deputado, por cortesia, informar de onde ele tirou este número, "meia dúzia", num país que tem no momento quase 10 000 estações de rádio, mais de 500 emissoras de televisão, cerca de 5 500 revistas e 2700 jornais? Estaria ele reprovando o fato de que há veículos com audiência e circulação muito maiores que os demais, porque o público, por sua livre e espontânea vontade, prefere ver, ouvir e ler mais uns do que outros? Que culpa têm os veículos que fazem mais sucesso, ou que ilegalidade cometem por serem os preferidos pela maioria do público?

Por que o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, não guardou um tostão dos bilhões de reais que seu estado recebeu em royalties de petróleo nos últimos anos? Desde 2007, quando assumiu o governo, até 2012, mais de 130 bilhões de reais foram arrecadados das empresas exploradoras de petróleo, e a parte do leão dessa montanha de dinheiro ficou com o Rio e seus municípios. Agora, com as perdas trazidas pela mudança na lei dos royaltíes, o governador se vinga atirando nos cidadãos do seu próprio estado: suspendeu pagamentos a fornecedores, ameaça criar mais impostos, fala em corte de serviços. Se não guardou nada do que recebeu, o que fez de útil com o dinheiro gasto?

O que há de comum entre essa gente toda é a convicção de que mandam - e quem manda não precisa explicar nada a quem está embaixo. Falam em banda larga e pré-sal, mas continuam agindo como se vivessem no Brasil dos engenhos, dos capitães do mato e da chibata. São os senhores do "Brasil para todos".

Deus, o diabo e ética eleitoral - ROBERTO DaMATTA

REVISTA ÉPOCA

Permita o leitor que eu comece com uma observação fora dos quadrantes jornalísticos. Se tudo, conforme aprendi quando jovem, é político (logo, o político inclui o religioso e o moral) e se nós, brasileiros, veneramos o “jogo” ou “briga política” a ser revelada ou esquecida quando os interesses são atendidos e os objetivos alcançados, por que diabos a política é o campo menos confiável e mais fluido da sociedade brasileira e do mundo moderno em geral? Se Deus morreu e o papa renunciou; se não há mais religião e a moralidade perdeu para o “politicamente correto”; por que então a “Política” (com p maiúsculo) não é o campo mais sério, consistente e confiável do sistema em que vivemos e eventualmente morremos?

Faço essa pergunta porque temos belos bate-bocas no palco do teatro político nacional. FHC contra Dilma; Lula contra FHC e Eduardo Campos; os irmãos Cid e Ciro Gomes contra Campos; Sérgio Cabral contra Lindbergh Farias; e, como arremate, Lula se imaginando um novo Abraham Lincoln.

Nesse ambiente de bate-boca, a presidente Dilma, suprema magistrada da nação, disse uma frase decisiva: “Podemos fazer o diabo só na hora da eleição. Quando a gente está no exercício do mandato, temos que nos respeitar”. Como, pergunta o ouvinte, o político eleito se transformará num governante correto – e eventualmente pensar que é Deus – quando se elegeu fazendo o diabo? Outra grave questão embutida na fala de Dilma é como levar a sério esse rito de passagem sagrado das democracias liberais e competitivas – as eleições –, com todo mundo com o diabo no corpo. Fazendo tudo o que der na telha e, assim, confirmando que em política vale tudo, menos perder. E ganhar de qualquer modo, como estamos fartos de saber, pode significar uma desastrosa perda para o país.

Quando a presidente Dilma Rousseff diz, em resposta ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que “nós não herdamos nada, nós construímos”, ela tenta evitar o impossível. O ponto é o seguinte: como não lidar com heranças que, afinal, são a parte mais humana da vida social – pois tudo o que somos é herdado e aprendido de outras gerações e linhagens –, sem ter de abandonar o esquerdismo infantil que pensa construir o Brasil por si mesmo, naquela linha lulista do “nunca antes se fez isso ou aquilo na história deste país”?

A autossuficiência que surge abertamente na fala da presidente Dilma nunca foi boa conselheira política. Ela leva à ausência de diálogo e, no limite, à eliminação do outro. O outro, na democracia, é a oposição política que, perdendo ou vencendo, vem confirmar a difícil vocação liberal de viver ao redor de um sistema de poder que muda seus atores, mantendo, porém, seus princípios e papéis. Uma oposição que deve se fortalecer na medida mesma da centralização, das tendências estatizantes, do aumento da inflação e do “pibinho”.

Entendo que, num país que no campo da “política” tudo permite, o problema não é saber se a presidente é ingrata ou não, como disse FHC. O que está em jogo é a questão da continuidade de certas políticas públicas e de uma visão estratégica do lugar do Brasil neste mundo globalizado e – por isso mesmo – confuso em que vivemos.

Todo sistema que recusa o despotismo – coisa que ainda temos de politizar com seriedade no Brasil – tem valores que ninguém discute. Muitos modos de fazer e pensar os problemas do país são necessariamente discutíveis. As democracias liberais são sistemas envolvidos em batalhas (mas não em guerras) rotineiras de opinião. Se não fossem, a democracia liberal acabaria. Quem inventou a herança como um conceito político negativo – a famosa “herança maldita” – não foi o PSDB nem a oposição. Foi justamente a reação petista que recusou literalmente todas as transformações realizadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso.

Havia todo um discurso de recusa, embutido na fórmula da “herança maldita”, que criticava a privatização da telefonia, a reestruturação do sistema bancário e financeiro e o Plano Real – cujo fracasso o PT previu. Até que o contexto engendrado graças ao Plano Real revelou sua eficácia e fez surgir os “pibões” do Lula, porque, mesmo com as crises, todos os marcos financeiros estavam compostos.

Só um partido de índole antidemocrática pode usar a expressão “herança maldita” quando o regime eleitoral que o levou ao poder estabelece a rotatividade. Seria possível a um time de futebol campeão falar que o título que acaba de conquistar e o futebol em que mostrou excelência são uma herança maldita? Se fizer isso, obviamente cospe no prato que comeu. Porque rejeita a linhagem que o levou ao campeonato e ao poder que – eis uma lição do futebol e do esporte em geral – deve ser mantida e devolvida com avanços ao novo vencedor. Existe no Brasil uma dificuldade em manter lealdade a sistemas políticos eleitorais de cunho liberal e competitivo e a administrações éticas. O ético aqui não é palavra para uso eleitoreiro, mas um valor que, entre outras coisas, coage o ator a limitar seu projeto de “levar vantagem em tudo” (essa máxima conhecida como Lei de Gerson), uma tendência onipresente em nossa prática política
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Não deixe o governo levar seu dinheiro - GUSTAVO CERBASI

REVISTA ÉPOCA

Desde 1º de março, a Receita Federal recebe as declarações de ajuste anual do Imposto de Renda das pessoas físicas. É um momento de dolorosa reflexão para quem é obrigado a declarar. Pois é quando apuramos a gorda parcela de nossa renda confiada ao governo, que há séculos mantém a tradição de administrá-la de maneira, digamos, pouco eficiente.

Se gerir recursos de maneira produtiva e benéfica não é o forte do Estado brasileiro, a declaração de renda traz uma verdadeira oportunidade de reaver parte disso. Com rendimentos e bens, podemos declarar despesas dedutíveis, condições de isenção, investimentos em previdência e doações, que podem diminuir o imposto devido. Quando tratada com a devida seriedade, a declaração de renda permite que parte dos recursos permaneça ou volte para nossos bolsos. No mínimo, isso melhora nossa condição de prover nossa família com o que é oferecido precariamente pelo Estado.

É um erro negligenciar essa oportunidade. Muitos contribuintes assumem esse erro, confiando o preenchimento de sua declaração a terceiros, sem tomar conhecimento do assunto, ou limitando o controle de suas finanças ao mínimo necessário.

Assuma essa responsabilidade para você, mesmo que tenha algum trabalho. Não é errado pleitear elevados valores de restituição, desde que sua renda esteja declarada e que você tenha gastos dedutíveis para abater. Também não é errado declarar bens, doações e investimentos informais (como arte e jóias), desde que você comprove a origem do dinheiro.

Muitos contribuintes tentam omitir da Receita Federal informações que são facilmente rastreadas em contracheques, extratos bancários e faturas de cartão de crédito. A Receita sabe quando você omite. O preenchimento preciso da declaração, com o intuito de identificar as vantagens que a lei lhe permite, é um direito seu e deve ser exercido com responsabilidade e cuidado.

Seu dinheiro vale mais em sua mão do que confiado ao Estado. Um plano de previdência privada lhe será mais vantajoso que contribuir ao INSS. Um plano de saúde oferecerá proteção para sua família superior à do SUS. Doar a instituições que permitam abater impostos fará com que sua ação social chegue integralmente a quem precisa.

Restituição do Imposto de Renda também é uma boa oportunidade de ganhos. Não lamente se, ao deixar para declarar mais para o fim de abril, sua restituição demorar a cair na conta. Enquanto a Receita Federal não lhe paga, o saldo a restituir é corrigido pela taxa Selic, sem tributação sobre a correção. Eis uma rara situação em que o governo é eficiente com nosso dinheiro, já que não existe aplicação de renda fixa tão rentável quanto essa.


A verdade da plástica - WALCYR CARRASCO

REVISTA ÉPOCA

Um amigo ligou entusiasmado:

– Vou fazer uma lipo!

Duas frases depois, descobri que, no final da intervenção, pretendia voltar dirigindo.

– É uma loucura! – disse. – Já fiz e preferi dormir na clínica.
– Mas o médico disse que não tem problema!

Contei meu caso:

– Quando acordei da anestesia, ainda fiquei tonto um bom tempo. Seria arriscado dirigir. Por sorte, não tive dores. Algumas pessoas têm. Além disso, você estará com o colete.

– Ahn?

Expliquei que quem faz lipo deve usar um colete modelador no abdome, durante uns dois meses.

– É quente. Nos dias de calor, eu me sentia como um salmão defumado.

Do outro lado da linha, só ouvia murmúrios incrédulos. Meu amigo é divorciado, pai de um menino pequeno. Falei:

– Não se arrisque. Pense no seu filho.

Há muitos anos, uma amiga, a atriz Ivete Bonfá, que chegou a atuar numa das minhas peças de teatro, fez lipo e plástica facial. Voltou para casa. Algumas horas depois, sentiu dores. Ao chegar ao hospital, era tarde. Teve septicemia e morreu. Depois desse exemplo dramático, meu amigo arrumou alguém para acompanhá-lo. No dia seguinte, me agradeceu:

– Me senti mal. Tive de deitar. Senti enjoo e tontura.

Médicos amenizam as notícias. Um bom profissional detecta o cliente com quem pode falar francamente sobre uma doença grave ou aquele que prefere não saber o que há de ruim. Se alguém chega à emergência torto numa maca, o médico diz aos familiares:

– Não se preocupem. Depois dos exames, teremos um quadro da situação.

O que mais pode falar? Em todo caso pode haver uma reviravolta, até nos mais inesperados. O profissional médico acredita que pode fazer alguma coisa pelo paciente e transmite essa sensação. Muitas vezes, na cirurgia plástica, o profissional ameniza demais. É até um incentivo, já que puxar o rosto acaba sendo questão de escolha. Após um regime, certa vez resolvi tirar a pele da papada. Escolhi o plástico e me internei numa clínica particular. A enfermeira veio me preparar. Disse:

– Não dói. Só o capacete é desconfortável.
– Queeeee.... capaceeeeete? – perguntei.

Acordei transformado em múmia. Em plásticas faciais, os pacientes são submetidos a um capacete de gaze, que comprime o rosto. Respira-se por dois furinhos no nariz e um na boca. Comida, só líquida, de canudinho. Em algumas técnicas, dura 24 horas. Noutras, 48. A sensação de claustrofobia é incontrolável. Chafurdei em tudo o que aprendi sobre meditação zen a vida inteira para não pirar:

– Respire fundo. Você vai se acalmar. Vai se acalmar! – dizia para mim mesmo.

Soube mais tarde que pacientes exaltados arrancaram os capacetes, sem se importar com mais nada. Nem mesmo em ficar piores do que antes da operação. Uma amiga resolveu arredondar o traseiro. Onde o cirurgião mostrou as próteses de silicone que aplicaria em sua silhueta. A certa altura, teve dúvida.

– Vou passar a vida inteira com a sensação de estar sentada numa almofada?
– Beeem...

Mesmo assim, fez. No pós-operatório, mais uma descoberta incômoda: devia passar um mês sem sentar. Dormir, só de bumbum para cima. Reclamou:

– Doutor, você disse que eu podia continuar trabalhando.
– Trabalhar, pode. Mas sem sentar.

Quem bota silicione nos seios frequentemente tem de manter as mãos abaixo do pescoço um bom tempo.

– Tive uma cliente que não conseguia comer sozinha – diz um fisioterapeuta.

Depois da operação, Branca de Neve pode acordar como Frankenstein. Há o caso de uma mulher que namorava o cirurgião. No auge da paixão, fez lipo, seios e puxou os olhos, tudo de uma vez. Foi o caos. O pombinho perfurou seu pulmão ao botar o silicone. Não arrematou a lipo. Puxou demais os olhos, que ficaram tortos. Aos R$ 15 mil planejados, teve de acrescentar uma semana de UTI. Até hoje faz tratamento para consertar os olhos: Botox para impedir que fechem, pois às vezes as pálpebras se comportam como persianas descontroladas; peeling para revigorar a pele. Quer parecer com ela mesma antes da plástica! O romance com o médico acabou, e ela pensa processá-lo.

Mesmo assim, sou a favor de plástica. Costumo dizer que com a idade a gente tem duas opções: parecer uma ameixa ou um pequinês. Determinar os prós e contras é uma questão pessoal. Mas o otimismo dos médicos precisa de uma cirurgia.


O que eles têm que nós não temos? - RUTH DE AQUINO

REVISTA ÉPOCA

Os argentinos têm cinco prêmios Nobel. Os brasileiros, nenhum. Os argentinos têm dois Oscars. Nós, nenhum. Os argentinos têm vários deuses no futebol. Nós também. Sou muito mais Messi que Neymar. Os argentinos têm uma mulher na Presidência. Nós também. Sou mais Dilma que Cristina. Argentinos e brasileiros amam um churrasco ou uma parrillada. A carne deles é muito melhor, mais saborosa e mais macia. Agora, perdemos não só na carne, mas no espírito. Os argentinos têm um papa.

Por ser jesuíta e andar sem batina de metrô e ônibus, por se recusar a receber carro e casa mesmo sendo arcebispo, por trabalhar com carentes, por não discursar em favor da Cúria e não estar associado às contas suspeitas do Banco do Vaticano, sou mais Jorge Mario Bergoglio que Odilo Scherer. O que mais me conquistou no primeiro papa Francisco, de cara? O sorriso e a concisão ao saudar os fiéis, pedindo a eles sua bênção. Poucas palavras, nenhuma carranca – e o sorriso que ilumina os olhos.

A ascendência conta na personalidade. Bergoglio é um argentino-italiano, enquanto Odilo é um alemão-brasileiro. Na estampa, na postura. Sem entrar no mérito individual, para enfrentar os dilemas da Igreja Católica, os escândalos sexuais e financeiros e a perda de fiéis, falo apenas de uma questão prosaica: simpatia. Não é pop ter um papa que lê Borges e Dostoiévski e aprendeu a cozinhar com a mãe?

Dom Odilo perdeu também por ser favorito. Como os craques dos gramados, sofreu uma marcação cerrada desde antes do conclave, especialmente dos italianos, que queriam seu conterrâneo no trono, o cardeal Angelo Scola. Os carrinhos por trás no arcebispo de São Paulo deixaram o arcebispo de Buenos Aires livre na cara do gol.

Era o homem certo na hora certa. Faz sentido que o primeiro papa de fora da Europa em 1.272 anos tenha sobrenome italiano, ame ópera e seja torcedor apaixonado de futebol – mais exatamente, do clube portenho San Lorenzo, fundado por um padre.
Além do novo papa Francisco, os argentinos têm dois Oscars, cinco prêmios Nobel e Lionel Messi

Há uma descrição popular bem conhecida da alma de nossos hermanos. Os argentinos são italianos que falam espanhol, mas pensam que são ingleses. Essa última parte da descrição está cada vez mais fora de moda, especialmente depois do recente plebiscito de cartas marcadas nas Malvinas. No arquipélago, um protetorado britânico com menos de 2 mil habitantes, a população continua entrincheirada nos pubs e no “fish and chips”, contra a reivindicação de soberania territorial da Argentina. Melhor dizer então que os argentinos pensam que são europeus. Até na decadência.

Hoje, nosso vizinho está acossado por uma economia em frangalhos, pelo desemprego em alta, pela inflação que provocou uma medida eleitoreira desastrada – o congelamento de preços – e pelo populismo de Cristina Kirchner, a presidente que sonha sair do poder apenas quando puder ser embalsamada. Vivemos agora com a Argentina tempos difíceis, que vão além da rivalidade folclórica e cultural. A Vale acaba de suspender o maior investimento privado da história da Argentina, de quase US$ 6 bilhões, por riscos políticos e econômicos.

Por tudo isso, a declaração espirituosa do novo pontífice – “Foram quase até o fim do mundo para buscar um papa” – se reveste de vários significados. Ele critica o governo Kirchner. A Argentina é bem mais fim do mundo que o Brasil.

O papa Francisco virá ao Rio de Janeiro para a Jornada da Juventude e deverá ser sucesso de crítica e bilheteria, por seu temperamento afável. Bergoglio passou rapidamente de argentino a “latino-americano”, para o Brasil também poder comemorar. Assim, a gente esquece que nossos vizinhos dão de cinco a zero em prêmios Nobel (dois da Paz, dois de Medicina e um de Química) e dois a zero em Oscar (O segredo dos seus olhos, de Juan José Campanella, em 2010, e A história oficial, de Luiz Puenzo, em 1985). O cinema argentino é mais sofisticado, mais diversificado e tem melhores diálogos que o brasileiro. Escapa de nosso costumeiro trinômio violência, favela e comédia.

No futebol, a disputa é entre Messi e Neymar. O moleque de 21 anos precisa comer muito arroz com feijão para chegar à consistência do argentino. Messi só pensa na bola e na equipe. Aí dá o show da semana passada na goleada do Barcelona contra o Milan. Neymar precisa baixar a bola.

Entrou na roda-viva de festas, boates, casas de shows, publicidade, brinquinhos de diamante, penteados, franjinhas e cabelos coloridos. Na mesma noite, trocou o smoking no Teatro Municipal do Rio de Janeiro por uma fantasia de Kiko, personagem do seriado Chaves, numa festa em São Paulo, onde ficou até as 4 horas da madrugada com a atriz Bruna Marquezine. Discutiu com fotógrafos. Seis horas depois, foi treinar no Santos. Imagina na Copa.


A MÃO DE DEUS - AGAMENON

O GLOBO - 17/03

Entrou água no chope da torcida brasileira! O país inteiro já estava dando como certa a vitória do Arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, o Xuxa, que ia ser eleito o primeiro Papa brasileiro. Essa estava no papo, quer dizer, no Papa. O Papa, assim como o petróleo, também ia ser nosso! A presidenta Dilma Roskoff disse que ia lançar em rede nacional o programa Meu Primeiro Papa. O Sumo Pontífice tupiniquim também ficou de fazer um show na Baixada com o Naldo e dizem até que Sua Santidade prometeu aparecer no “Esquenta” da Regina Casé onde ia cantar um samba com o Arlindo Cruz, seu sambista preferido, talvez por causa da cruz.

Mas o ufanismo patrioteiro foi por água abaixo quando a fumaça branca saiu pela chaminé na Praça de São Pedro e o mundo ficou sabendo que o próximo Papa é argentino!!!! Todos os teólogos da Globo News erraram feio e voltaram para os seus mosteiros com o rabo entre as pernas porque, contrariando as apostas, os cardeais elegeram Jorge Mario Lobo Zagallo Beroglio, o Papa Francisco.

Ao contrário de seu antecessor, o antipático e arrogante Adolf Ratzinger, o Bento XVI cm, esse novo Papa argentino promete. Ex-Arcebispo de Búzios, o novo Papa, o Beiroglio, ficou conhecido no famoso balneário platino por seu trabalho episcopau, quer dizer, episcopal. A eleição de Francisco levou ao delírio os católicos da América do Sul já que, pela primeira vez, a Igreja tem um pontífice sul americano. Assim que chegou na sacada do Vaticano, o primeiro Papa Latino cantou “Festa no Apê” para os milhares de fiéis que se amontoavam na Praça São Pedro para tirar uma foto com a Patrícia Poeta.

E, para desgosto dos brasileiros, os nossos detestados hermanos argentinos agora têm mais um motivo para tirar onda com a nossa cara. Argentino de raiz, o Papa é peronista e o povo argentinho, como sempre, foi às ruas fazer um panelaço e saudar a sua eleição que, ao contrário do gol do Maradona, não foi roubada.
Os vaticanistas da GloboNews, que não dão uma dentro, agora estão dizendo que o papa Beirola, quer dizer, Beroglio vai ser um Papa progressista inclusive a favor do aborto no casamento gay. Ora, pra mim, papa progressista é igual cabeça de bacalhau: eu nunca vi! Ou o sujeito é Papa ou é progressista. E por falar em Papas de esquerda, quem não se conforma com eleição do argentino é o ex-atual presidente em exercício, Luís Santo Inácio Lula da Silva. Lula achava que mesmo sem participar do conclave, ia ser eleito o novo Papa. E tinha até escolhido o seu nome: Luís 51, uma boa idéia.

AGAMENON ENTREVISTA COM EXCLUSIVIDADE O PAPA CHICO

- Sua Santidade, como o senhor gostaria de ser chamado? Papa Chico?
- Si, papo, mas depende del chico...
- Que mensagem Sua Santidade manda para os pedófilos da Igreja?
-La carne es fraca...
-Pelé ou Maradona?
- Messi!
- Papa Chico, qual é o seu prato preferido?
- Como todo argentino, yo me amarro em um churrasco mas só se for com “papas” fritas, rs, rs, rs...
-Sua Santidade, com escândalos no Vaticano, o senhor não acha que está com um pepino nas mãos?
-Tudo bien, é de menino que se torce el pepino...
-E qual são os seus planos para sua carreira? Cinema, teatro ou televisão?
-Yo pretendo fazer um filme sobre la mia vida e já convidei el actor Ricardo Darín, o Gerard Depardieu argentino, para interpretar o papel de mi mesmo.
-Uma última pergunta: depois que o seu papado acabar o senhor pretende virar santo?
- Habla sério, Agamenon! Usted já viu algum argentino santo?

***

O ex papa alemão, Adolf XVI, ficou espantado com a eleição de um papa argentino e declarou que os cardeais só podiam estar de porre.

***

Agamenon Mendes Pedreira estudou no Colégio jesuíta Santo Inácio de Boyola.

A bota amarela - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - 17/03

Houve um tempo que eu detestava roupas amarelas. O que não deixava de ser estranho, uma vez que essa cor tem uma energia que combina com meu estado de espírito. Mas me fechei para o amarelo de uma forma ranzinza e implicante, e nesse fechamento creio que enclausurei uma parte importante de mim que passou a fazer falta. A parte em que deixo de imitar a mim mesma a fim de permitir que eu me surpreenda.

Explico: durante a vida a gente vai assimilando ideias, cultivando gostos, estabelecendo maneiras de ser, até que vira um ser humano aparentemente acabado: sou desse jeito, prefiro isso, não suporto aquilo, minha turma é essa, daqui não saio. Instalamo-nos numa bolha confortável e já temos as respostas prontas para quem vier bater à nossa porta.

Na hora de enfrentar as demandas do dia a dia, nada mais simples: é só imitar aquela criatura com a qual nos habituamos. Já temos o manual de instruções decorado. Sou desse jeito, prefiro isso, não suporto aquilo etc, etc.

Até que chega um momento em que você se dá conta de que parece um boneco em que deram corda e que vive repetindo as mesmas frases, os mesmos gestos, sem nenhuma reflexão a respeito. Está há anos imitando a si mesmo, pois é fácil e rápido, um modelo pra lá de conhecido. No entanto, você tem uma reserva de imaginação, ainda sem uso, que deve ser acionada para o que, às vezes, se faz necessário: rasgar o manual e escrever uma nova história a partir do zero.

Pois então estava eu, caminhando por uma calçada, de bobeira, quando passei por uma vitrine e vi um desses manequins sem rosto vestindo um casaco colorido, uma calça jeans e uma bota amarela. Meu olhar de Cyborg (ninguém foi criança impunemente) focalizou a bota, deu-lhe ampliação e fez com que ela se destacasse do conjunto.

Eu não enxergava mais nada, só aquela bota amarela. E, como num transe, entrei na loja, pedi meu número e provei a bota, sem ter a mínima ideia onde, quando e com que coragem a usaria um dia. Eu simplesmente saquei meu cartão de crédito e comprei a metáfora da vida que eu pretendia levar dali por diante.

Se não usá-la, poderei colocá-la numa prateleira da parede para que ela me lembre de que não precisamos ter uma cor preferida, que nossas convicções podem ser reavaliadas sem prejuízo à nossa imagem, que o que a gente gostava antes não precisa ser aniquilado em detrimento de nossos novos e frívolos amores, que ninguém perderá sua essência só porque resolveu variar de personagem.

Insistir nas próprias convicções é um perigo. A certeza nem sempre é amiga da sanidade. Se eu fosse uma fashionista, ninguém estranharia, mas não sendo, há quem vá me achar meio maluca desfilando de bota amarela por aí. Não importa. Ela estará me conduzindo justamente ao saudável mundo do desapego de nossas crenças.


Um pouco de sensatez - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 17/03

Felizmente a ministra Marta Suplicy recuou da decisão de incluir as TVs a cabo no rol dos produtores de cultura beneficiados por mecanismos do ministério. O artigo de Cacá Diegeues na semana passada deixava claro o absurdo que seria a aplicação da nova norma. TVs a cabo fazem dinheiro grande, são dinheiro grande, e nem traduzem os títulos ingleses das séries, quase todas americanas, que apresentam. Um ministério que deseje incentivar a criação cultural no Brasil não tem por que incluí-las em seus programas de incentivo.

Será crível que Marco Feliciano tenha sido escolhido presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias? Na explicação que ele ofereceu aos fiéis da sua igreja, a África é citada várias vezes como “essse país”, o que mostra ignorância a respeito do assunto que tratou com tanta veemência. Nitidamente ele vê a África como um todo unitário. Bem, a maldição dos que, miticamente, foram popular a África já foi usada antes pelos racistas de vários lugares para justificar a escravidão. Feliciano a usa, sem cuidado, para explicar Idi Amin, a Aids, as faminas etc. Uma autoridade responsável por uma comissão de direitos humanos não pode basear suas falas e atitudes em dogmas religiosos. Menos ainda se ele demonstra simplismo grosseiro na interpretação destes.

É difícil admitir que presida uma comissão que supostamente protege as minorias um homem que grita, irado, que se os homossexuais querem fazer “suas porcarias”, que as façam escondidos dentro de seus quartos, em suas casas, nunca se beijando em locais onde suas filhas possam ver “dois homens barbados, de pernas raspadas, aos beijos”. O pleito de casamento gay é um pleito de minoria representada que deve ser estudado por comissões parlamentares que tratem do assunto com calma, lucidez e isenção. Você pode seguir uma fé que determina que os atos homoafetivos são pecado (na verdade, são O PECADÃO, como observou alguém que meditou sobre o assunto, já que é um pecado que, dentre todos, costumava despertar a ira até dos incréus, sendo incomparável com o falso testemunho, a gula ou mesmo a atividade sexual livre entre pessoas de sexos opostos), mas essa maldição religiosa lançada sobre um tema não pode entrar aos berros num grêmio de legisladores que deveria acompanhar o movimento da sociedade auscultando suas forças e tendências. Há religiosos e ateus que odeiam atos homoafetivos e consideram os africanos uns amaldiçoados, mas isso não representa o movimento da sociedade como um todo. As pesquisas na maioria dos países do Ocidente (inclusive o Brasil) não dizem isso. E, mais importante, para além do aspecto democrático dessas auscultações, há de haver princípios de direitos inegociáveis, como é o direito de igualdade de respeito e de oportunidades. É simplesmente grotesco que um religioso que fala em tom tão fanático se eleja presidente de uma comissão que deveria proteger os que têm carência de respeitabilidade e de oportunidades.

Espero que a menção feita por Marina Silva, a quem tanto admiro, à troca “de um preconceito pelo outro”, no caso da discussão sobre a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, não signifique que opor-se à escolha de Feliciano, nos termos em que o faço, é uma mera troca de preconceitos. Contra quê, aliás, seriam os preconceitos de quem discute a escolha? Contra evangélicos? Contra pastores? Contra religiosos em geral? Sim, sem dúvida há. Vejo em filmes e piadas de TV, em conversas e em textos publicados, intolerância contra a vitalidade com que as igrejas neopentecostais se impõem no Brasil. A hipocrisia dos pregadores, a ganância de dinheiro, enfim, tudo o que se pode apontar em toda organização religiosa é quase sempre o aspecto ressaltado. Mas eu nunca me identifiquei com essa atitude. Vejo o crescimento das igrejas evangélicas como uma forma de progresso no nosso caminho para onde devemos ir. Não admiti nunca as campanhas anticandomblé que elas alardeavam. Mas isso serenou. Religião é assunto imenso. Leio Mangabeira. Penso. Acompanho pessoas íntimas que são profundamente religiosas. Umas católicas, outras evangélicas e ainda outras espíritas ou candomblezeiras. Eu próprio não sigo religião. Mas, mesmo que seguisse, teria de entender que Comissão de Direitos Humanos deve tratar dos temas pertinentes de modo não sectário.

Será que o Brasil, além do mini-PIB, terá que passar agora por papagaiadas como essas? São muitas maluquices que podem atrasar nossa caminhada. Ao contrário do que diz Feliciano, o continente africano está se erguendo. O Brasil, tão cheio de promessas desde sempre, será que vai ficar entalado?

Pelo menos Marta viu a luz.

"A LOURA TÁ CERTA".


A loucura de Deus - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

O ESTADÃO - 17/03

Pedro era a pedra sobre a qual se ergueria sua igreja, disse Jesus, no primeiro trocadilho registrado pela História, segundo o Millôr. Mas foi Paulo quem a construiu. O apóstolo propagador levou o Cristianismo a todos os cantos do mundo conhecido e, na sua pregação, definiu o que havia de diferente na nova religião. Opondo-se a Pedro e aos cristãos primitivos de Jerusalém, Paulo marcou a distância entre a nova crença e suas raízes judaicas.

E para marcar sua distância da filosofia grega dominante proclamou o Cristianismo livre do racionalismo e do empirismo. Sapientiam sapientum perdam destruirei a sabedoria dos sábios disse Paulo, referindo-se a todas as formas de pensamento que a religião chegava para deslocar.

Na sua primeira epístola aos Coríntios, Paulo escreveu, pelo menos na minha edição da Bíblia, que a “loucura” de Deus era mais sábia do que a sabedoria de todos os sábios, “loucura” significando o descompromisso da fé com a lógica. Nascia aí a discórdia entre a Igreja e a Ciência que atravessaria os séculos.

Se Pedro foi o pai da Igreja como entidade mística, Paulo foi o pai da Igreja como entidade política e prática, e desde então as duas tradições competem ou se completam na luta contra o secularismo e a razão científica. É a força mística, a “loucura”, da Igreja que a mantém viva até hoje, é a força política que ela mobiliza nas suas batalhas históricas para manter-se relevante. Suas lutas contra heréticos como Galileu eram menos para defender conceitos consagrados como o Universo geocêntrico e mais para preservar poder político ameaçado, o que equivale a dizer que em muitos casos o obscurantismo da Igreja era pragmatismo mal pensado.

A Inquisição não aconteceu como terror contra agentes do Diabo e descrentes da Fé verdadeira, foi uma prolongada encenação de poder, um mise-en-scéne político com turnê internacional. A origem do terror não foi, portanto, a Igreja do simples e místico Pedro mas a do intelectual e craque em marquetchim Paulo

O admirável é que a força mística da Igreja de Pedro tenha sobrevivido a todas as derrotas políticas da Igreja de Paulo. Agora mesmo se discute a relevância de uma Igreja que se posiciona contra o uso de preservativos que podem evitar doenças e morte e contra experiências genéticas que podem salvar vidas - em nome de uma sacralização da vida. Dá quase para dizer que a “loucura” de Deus, fora do contexto em que Paulo a usou como sabedoria superior à razão e à lógica, é loucura mesmo.

Alguns dos novos pecados capitais publicados pelo Vaticano são surpreendentes. Agora é pecado ficar rico demais. O Vaticano só não especificou quanto é demais, talvez incerto sobre a sua própria riqueza. E perderam a oportunidade de transformar em pecado mortal, passível de uma eternidade no inferno, atender celular no cinema.

As igrejas de Pedro e de Paulo continuam competindo, como se viu na escolha do novo papa (estou escrevendo antes da fumaça branca). O que será mais temível, uma vitória de Pedro e dos simples em extinção ou uma vitória de Paulo e sua sede de relevância e poder, já que para as duas igrejas o descompromisso com a lógica das “loucuras” de Deus é o mesmo?


O amor depois do divórcio - FABRÍCIO CARPINEJAR

ZERO HORA - 17/03


Os promotores de justiça sabem. Os juízes sabem. Os terapeutas sabem. Os massoterapeutas sabem. As faxineiras sabem.

Nunca houve tanta reconciliação. Mais do que casamento e divórcio.

A reconciliação é o amor autêntico. O amor bandido que se converteu à lei. O amor bêbado que largou o álcool. O amor drogado que fugiu dos vícios.

A reconciliação é o amor depois das férias, recuperado da perseguição dos defeitos e da distorção das conversas.

É o amor depois da mentira, depois do tribunal, depois da maldade da sinceridade, depois da carência.

Casais que se prometeram o inferno, que disputaram a guarda na Justiça, que enlouqueceram os filhos com suas conspirações, decidem voltar a morar junto, para temor dos vizinhos, para o susto da parentada.

A reconciliação é uma moda entre os divorciados.

Mal se acostumam com o nome de solteiro e se envolvem com os mesmos parceiros. Mas os mesmos parceiros são outros. Outros novos.

A distância elimina a culpa. A falta filtra a cobrança.

Eles experimentaram um tempo sozinhos para descobrir que se matavam por uma idealização.

Enfrentaram relacionamentos diferentes, exageros e excessos, contemporizaram os medos e as rejeições, provaram de frustrações amorosas.

Viram que o príncipe se vestia mal, e o sapo coaxava bonito.

Viram que não existe demônio ou santo no amor. Não existe certo ou errado, existe o amor e ponto.

Este amor provisório, inconstante, inacabado e vivo.

Este amor pano de prato, não toalha de mesa, mas que serve para secar a louça e as lágrimas.

Quem era ciumento retorna equilibrado, quem era indiferente regressa atento.

A trégua salva e refina o comportamento. O casal passa a adotar no dia-a-dia aquilo que não admitia fazer e que o outro recomendava.

O que soava como crítica antigamente passa a ser conselho.

Gordos emagrecem com exercícios físicos, brabos examinam seus ataques de fúria.

A saudade era um recalque e se transforma em sabedoria.

O par percebe que é melhor ser inexato do que inexistente.

Durante a separação, ninguém aceita ressalva e exame de consciência.

A separação é soberba, escandalosa, arrogante. Todos gritam e espalham os motivos da discórdia.

Já a reconciliação é humilde, ouvinte, discreta. Os amantes cochicham juras e esquecem as falhas. Baixam as exigências para aperfeiçoar o entendimento.

A reconciliação é o amor maduro, o amor que ressuscitou, o amor que desistiu de brigar por besteiras e intrigas.

O amor que é mão dada entre o erro e o perdão. Mas que agora pretende envelhecer de mãos dadas para sempre.

MARIA CRISTINA FRIAS - MERCADO ABERTO

FOLHA DE SP - 17/03

Estado de SP economizou R$ 7,4 bi com processo de compras eletrônico
Desde a criação da Bolsa Eletrônica de Compras (Bec) de São Paulo, em 2000, até 19 de fevereiro, o Estado deixou de gastar R$ 7,43 bilhões em compras, considerada a previsão de despesas e o que foi de fato negociado.

A economia no período foi de 24%, segundo a Secretaria da Fazenda paulista. Em 2013, a economia já alcançou 27%.

Cada compra tem um parâmetro de preço por consultas e aquisições anteriores.

Conhecido o valor inicial, ofertantes vão baixando os valores, dentro das especificações do produtos pedidos, segundo Andrea Calabi, secretário estadual da Fazenda.

"Conseguimos, por meio da compra eletrônica, ter muitos ofertantes em processos transparentes que redundam em economia para o Estado", diz o secretário.

"No acumulado dos valores de gastos previstos inicialmente, seriam R$ 30 bilhões de 2000 a 2013, mas o gasto foi de R$ 23 bilhões."

Em 2012, o Estado poupou R$ 2,75 bilhões. Esse é o valor que o governo deixou de gastar em relação ao que estava previsto originalmente, uma economia de 23%.

As compras e a contratação de serviços da administração pública pela Bec tornaram-se obrigatórias em 2007.

"De lá para cá, as aquisições no pregão saíram de 20%, em agosto de 2007, para 97%, em janeiro de 2013", afirma Maria de Fátima Ferreira, coordenadora da Bec.

São 155 mil itens adquiridos de 45 mil fornecedores, segundo Ferreira.

As empresas públicas que mais compram pelo pregão são Metrô, Dersa, CPTM e IPT.

RECRUTAMENTO DE EVENTOS
O Gi Group, multinacional italiana de recursos humanos, abrirá dois novos escritórios e criará duas divisões no Brasil neste ano.

Hoje, a companhia tem 14 unidades em oito Estados do país. As novas serão instaladas em Fortaleza (CE) e em Joinville (SC).

Uma das novas áreas da empresa fará seleção e treinamento de executivos de alta gerência. A outra será especializada em marketing promocional e eventos. Ambas ficarão em São Paulo.

"O setor de eventos no Brasil está crescendo e precisando de pessoas mais capacitadas", diz Rui Rochega, CEO da multinacional no país.

A companhia prevê abrir uma segunda divisão de marketing ainda neste ano, que ficará em Belo Horizonte.

Lente... A Colcci vai entrar no setor óptico com a comercialização de óculos de sol e de grau. Os 40 modelos passarão a ser vendidos em abril.

...de aumento Os óculos serão comercializados em 1.500 pontos, entre lojas da Colcci e ópticas, de acordo com a empresa. Os modelos dos produtos estão sendo desenvolvidos há 14 meses.

Sacola... Fabricantes de embalagens plásticas acabaram de criar o Instituto Ideais (Incentivo e Desenvolvimento de Embalagens Ambientais, Inovação e Sustentabilidade)

...plástica A entidade, formada também por ONGs, irá desenvolver tecnologias para a fabricação de produtos biodegradáveis e fará a certificação, além dos testes das sacolas.

BANDEIRA FRANCESA
A cadeia francesa de hotéis Sofitel tem planos de aumentar a sua presença na América Latina e nos EUA.

"Meu objetivo é ajudar a encontrar investidores para hotéis em cidades onde não estamos, como São Paulo, Brasília, Boston e Cidade do México", diz Dominique Colliat, vice-presidente sênior da Sofitel Américas.

A rede, que é uma unidade de negócios da Accor, chegou a ter 206 hotéis no mundo e, agora, tem 125.

"Visamos 150 unidades em 2015 no mundo. Nas Américas, temos 17 hotéis e gostaríamos de dobrar até 2017."

São Paulo, que comportaria dois hotéis, e Brasília são prioridades. "Ainda não sabemos quando será possível nos estabelecer aqui. Leva em geral dois ou três anos. Queremos também estar em Santiago (Chile), ter outro em Buenos Aires e, talvez, em Bogotá (Colômbia)." Por ora, nada de Nordeste do Brasil, "só em grandes cidades".

O Caesar Park Ipanema foi comprado pela Accor e deve virar nos próximos dois anos um Sofitel So, selo de hotéis de design, um "pouquinho" mais caros, segundo Colliat. É o único Sofitel próprio. Todos os outros são contratos de gestão hoteleira.

"Administramos e somos remunerados por isso. O resultado vai para os investidores." A rede fará ainda um aporte na renovação dos hotéis do Rio até a Olimpíada.

"Só para o de Copacabana irão recursos entre US$ 20 milhões e US$ 30 milhões."

GÁS RAREFEITO
O preço do botijão de gás de 13 kg perdeu competitividade e registrou a pior relação com o salário mínimo em dez anos.

A conclusão é de levantamento da Copagaz, distribuidora de Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), feito com base em dados da Agência Nacional do Petróleo.

Em 2003, o botijão representava 14,7% do salário mínimo da época. Dez anos depois, passou a equivaler 5,9%.

"Tínhamos entre 15 e 16 empresas, mas, com margens baixas de lucro, a concorrência tornou-se grande e eliminou companhias. Hoje, somos seis", diz Ueze Zahran, presidente da Copagaz.

Os preconceitos - DANUZA LEÃO

FOLHA DE SP - 17/03

Em 10 anos de PT, existe uma minoria que não foi contemplada com nenhum cargo importante: a gay


Vamos falar a verdade: o governo de Fernando Henrique fez muito pela queda dos preconceitos e a valorização das minorias em geral. Mas devemos reconhecer que o PT fez muito mais: deu voz forte às mulheres e aos afrodescendentes, voz que eles talvez nunca tenham tido antes.

Desde que d. Dilma assumiu o cargo, sempre que houve uma brecha ela colocou uma mulher, e nem sei quantas existem em cargos importantes (nem se estão dando conta do que fazem), mas sei que são muitas. Talvez até mais do que seria preciso, para que o universo se convença da igualdade entre homens e mulheres.

Mas em 10 anos de PT, existe uma minoria que não foi contemplada com nenhum cargo importante: a minoria gay, que nem é tão minoria assim.

Na parada gay de São Paulo eles conseguem lotar a av. Paulista com centenas de milhares de pessoas entre gays e simpatizantes da causa.

Eles existem -e eu conheço muitos; são médicos, advogados, arquitetos, engenheiros, enfim, estão em todos os setores, para não falar na vida artística. Mas nos ministérios, na presidência, nas diretorias das grandes Estatais, nunca se ouviu falar de nenhum; porque será?

A ministra da Cultura sempre prestigiou a parada Gay, mas nem agora, com o poder na mão, convidou algum -ou alguma- representante da classe para colaborar com ela.

Pode ser até que exista um ou uma homossexual, em algum cargo modesto, mas que ainda não saiu do armário. Aliás, não sejamos ingênuos: é claro que em postos altíssimos da República devem existir muitos gays, só que ainda enrustidos, e não é desses que estamos falando. Mas daqueles sobre os quais não existe a menor dúvida, e que se assumem como tal.

Se os prefeito de Nova York, Paris e Berlim -e excelentes prefeitos, tanto que foram reeleitos são gays, porque o Brasil não pode ter um ministro assumido? E por falar na ministra, acho que ela só existe para fazer a ponte entre os héteros e os gays, para que não pensem que o PT não gosta dos gays.

Voltando: o PT está no poder há 10 anos e não me recordo de ter ouvido falar de ninguém do partido que seja assumidamente gay, então vamos combinar: para acreditar que o PT quer mesmo acabar com os preconceitos e é mesmo contra a intolerância e a favor da aceitação da pluralidade e das diversidades -todas-, é preciso que algum figurão petista, gay, seja candidato ou assuma um posto importante no governo.

Seria bacana, ver o ex-presidente Lula num palanque, pedindo votos para um candidato gay assumido. Vamos lá, Lula? A reforma ministerial está por pouco e a campanha já começou, dois bons momentos que não podem ser desperdiçados, a não ser que o PT seja preconceituoso em relação aos homossexuais.

Será que ele é?

P.S.: Todos estamos cansados de saber que as mulheres são capazes de tudo, e está aí d. Dilma provando que são mesmo; mas vamos admitir que mesmo as pessoas mais liberais têm, lá no fundo, um ranço preconceituoso, e às vezes ele se revela, inconscientemente. Aconteceu, no Dia Internacional da Mulher.

Foi exatamente este o dia que d. Dilma escolheu para desovar mais uma de suas bondades: a desoneração da cesta básica. Cesta básica é coisa de cozinha, e quem fala em cozinha pensa em mulher; ato mais do que falho da presidente.

DILMA CAGANDO PELA BOCA!


Uma trapalhada em Cingapura - ELIO GASPARI

O GLOBO - 17/03

Antonio Patriota deverá explicar quem mandou sugerir à Jurong que saísse do caminho de Eike e André Esteves


Está sobre a mesa do chanceler Antonio Patriota uma daquelas encrencas que caem nas costas dos diplomatas e acabam em fritura quando eles ouvem os poderosos do momento. O senador Ricardo Ferraço denunciou que o embaixador do Brasil em Cingapura, Luís Fernando Serra, procurou a direção da empresa Jurong para que ela transferisse seu estaleiro do município capixaba de Aracruz para o Porto do Açu, no norte do Rio de Janeiro. Esse empreendimento pertence ao empresário Eike Batista, que há pouco se associou ao banqueiro André Esteves, do BTG Pactual. A gestão de Cingapura foi confirmada pelos diretores da Jurong no Brasil.

Como se fosse uma brincadeira de cubos, um estaleiro que está com 15% de suas obras feitas, com investimentos previstos para R$ 500 milhões e encomendas assinadas, seria transferido total ou parcialmente para outro lugar. No fundo, trata-se de repassar as encomendas e de absorver um concorrente. Dificilmente uma ideia dessas sairia da cabeça do embaixador. Segundo o senador Ferraço, num contato que teve com Nery De Rossi, secretário do Desenvolvimento do governo capixaba, o diplomata informou que a gestão foi solicitada pelos ministros Guido Mantega, da Fazenda, e Fernando Pimentel, do Desenvolvimento. Os dois negaram que tenham patrocinado a proposta.

Se os ministros pediram a gestão, deveriam tê-lo feito formalmente. Nesse caso, estaria documentada. O que levaria um diplomata lotado em Cingapura a sugerir a transferência de um empreendimento para a carteira de interesses de Batista e Esteves? Não é da tradição do Itamaraty esse tipo de ligeireza. Pelo contrário, em 1980 o embaixador do Brasil no Chile, Raul de Vincenzi, provocou uma situação de barata-voa no Planalto quando um general muy amigo de Augusto Pinochet disse-lhe que a transação de uma hidrelétrica já tinha sido acertada em escalões superiores brasileiros. Quando De Vincenzi narrou o encontro num telegrama oficial e pediu instruções, os hierarcas disseram que nada tinham a ver com a história.

Ricardo Ferraço preside a Comissão de Relações Exteriores do Senado e pediu formalmente a Patriota que explique a história. A ver.

MP 608

O governo enviou ao Congresso uma medida provisória (608) mexendo com as relações entre a banca e a Receita. Na essência, ela corrige uma anomalia, pela qual os bancos têm que pagar impostos sobre empréstimos antes que eles sejam pagos. Assim como cobrar a um jornal um imposto sobre a tiragem, em vez de fazê-lo sobre os exemplares vendidos. Como todas as legislações do gênero, tem seus cantinhos empoeirados. Há parlamentares lendo o texto arcano da MP, certos de que um de seus dispositivos, prevendo que as despesas da Viúva entrarão no Orçamento do ano que vem, indica que vai sobrar para o Boa Senhora.

BARRA PESADA

Para que se meça o tamanho da encrenca em que se meteu o papa Francisco. Seu antecessor, Bento 16, jogou a toalha e, para não ser sequestrado pela Cúria, João Paulo 2º não repassava ao secretário de Estado memorandos de algumas de suas audiências privadas. Dava a memória das conversas ao seu secretário particular que mantinha um diário, guardado num cofre. Algumas cartas a ele endereçadas deveriam ser entregues fechadas. O papa Woytila exasperava alguns cardeais ouvindo-os por horas e fazendo o contrário do que lhe sugeriam.

EREMILDO, O IDIOTA

Eremildo é um idiota e ouviu o ministro Guido Mantega dizer que, se houver "abusos" com os preços de mercadorias que tiveram seus impostos desonerados, o governo poderá suspender os benefícios. O cretino não sabe definir "abusos", mas acha que, nesse caso, os preços subirão ainda mais e ele pagará a conta pela valentia do ministro.

UMA CARIDADE PARA FRANCISCO, LEIA SEU LIVRO

O papa Francisco precisa de uma ajuda. Leiam seu livro "Sobre el Cielo y la Tierra". (O e-book está à venda na Amazon americana por US$ 6,99, mas, por arte de Asmodeu, está fora da loja eletrônica brasileira.) Tem 215 páginas e saiu no início do ano passado. Trata-se de um longo diálogo com o rabino Abraham Skorka. Coisa inteligentíssima. É impossível lê-lo e sair por aí repetindo rótulos tais como "conservador" ou "homem simples" porque anda de ônibus. A simplicidade do cardeal Bergoglio vai muito além. Ele vê o catolicismo como algo despojado: "Bispos e padres têm que sujar os pés de barro". Uma das suas mais duras críticas (depois das lambadas nos ladrões-milionários) vai para os meios de comunicação que simplificam as agendas, tornando-as irrelevantes ou insolúveis: "Desinformam".

Até a noite de quarta feira o signatário não sabia quem era ele. No dia seguinte, não encontrou um só bergogliólogo que mostrasse ter lido o livro de Francisco. Ele é tudo menos um clérigo conservador. (Segundo o fidedigno jornalista Horácio Verbitsky, há 30 anos ele deu uma mãozinha à ditadura, numa época em que a hierarquia católica estava casada com os generais. Bergoglio admitiu que foram cometidos erros genéricos, mas não assumiu responsabilidade pessoal.)

Pode ser conservador um cardeal que quer abrir os arquivos do Vaticano para que se estude o Holocausto? Ele é contra o casamento de homossexuais e o aborto, mas isso não é conservadorismo, é a doutrina da igreja. Pílula? Astuciosamente calado. Em diversas ocasiões critica a conduta da igreja, seu regalismo e a promiscuidade com afortunados que fingem fazer caridade. Propõe tolerância zero para os pedófilos e chama o velho truque de transferi-los para outras paróquias de "estupidez".

O papa Francisco é um jesuíta severo. Diz que senhoras emperiquitadas, "vestidas, ou desvestidas", em casamentos não vão às igrejas para um ato religioso, mas para exibirem-se. Tabela de preços para cerimônias? "Isso é fazer comércio com o culto." Ao mesmo tempo, reconhece que casais morando juntos antes do matrimônio são um "fato antropológico".

Francisco tem um "alertômetro". Evita dar a comunhão a notórios vigaristas e jamais se deixa fotografar com eles.

O livro é muito melhor que este breve resumo. Quem lê-lo viverá umas boas duas horas. Não pode ser conservador (seja lá o que isso significa) uma pessoa que diz o seguinte:

"O religioso às vezes chama atenção sobre certos pontos da vida privada ou pública porque é o condutor da paróquia. Ele não tem direito de se meter na vida privada dos outros. Se Deus, na criação, correu o risco de nos tornar livres, quem sou eu para me meter?"

Hora de o craque falar - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 17/03

Mesmo enfrentando muitas retrancas, no Espanhol e na Copa dos Campeões, Messi não para de fazer gols


Na coluna anterior, falei da violência e da guerra urbana nas grandes cidades brasileiras. Há ainda o caos no trânsito. Por isso, por não querer ser punido pela lei seca, por encontrar tudo o que preciso perto de onde moro e por gostar de caminhar, além de fazer bem à saúde, raramente dirijo. Quando é necessário, pego um táxi. Até ao supermercado vou a pé, com minha sacola.

No caminho, converso sobre futebol. Uma senhora, que, pela primeira vez, tinha visto o Barcelona jogar durante toda uma partida, estava encantada com a troca de passes do time, com a bola passando perto de milhões de pernas dos jogadores do Milan, sem perdê-la.

Um senhor disse que Messi não é nenhuma maravilha e que queria vê-lo no Brasil. Completou, seria derrubado durante todo o jogo, como fazem com Neymar. Nos últimos tempos, aumentou muito o número de pessoas, no Brasil, que só conhecem futebol pelo olhar bélico do confronto e pelo resultado. Para eles, o Barcelona pratica outro esporte.

Depois da partida, Iniesta, o terceiro melhor do mundo, ao lado de Xavi, em vez de dizer que o Barcelona calou a boca dos críticos, como diriam muitos jogadores brasileiros, declarou que o jogo foi uma lição para o time catalão, que precisa jogar sempre dessa forma, contra grandes equipes. Só faltou Iniesta pedir desculpa pelas três derrotas anteriores.

A variação tática usada pelo Barcelona, contra o Milan, com uma linha de três defensores (Piqué, Mascherano e Jordi Alba), Daniel Alves de ponta direita, e Villa de centroavante, já foi utilizada por Cruyff, Josep Guardiola e Tito Vilanova.

O interino Jordi Moura seguiu a receita. É a tática que o time usa quando quer arriscar mais. Ficam três no campo do Barcelona e sete no do adversário.

A maioria dos técnicos brasileiros escala três zagueiros para reforçar a defesa. Jogam sete atrás (três zagueiros, dois alas e dois volantes) e três mais adiantados.

Bastou o Barcelona perder três jogos, e Messi não brilhar, para dizerem que ele faz muitos gols porque joga contra fracas equipes da Espanha. Messi foi o artilheiro 
das quatro últimas Copas dos Campeões e, em poucos anos, já é o segundo maior goleador da história da competição. Os grandes craques hoje, ainda mais Messi, pelo Barcelona, enfrentam mais retrancas que os do passado.

Na biografia de Messi, escrita pelo jornalista argentino Leonardo Faccio, professoras e pessoas que conviveram com o menino dizem que ele era muito tímido, tinha baixíssima autoestima e vivia em silêncio. Muitos devem ter pensado: "Esse menino não vai dar nada na vida".

Messi deve ter mudado pouco.

Ele tem o perfil contrário dos vencedores dos manuais de autoajuda. Porém, quando entra em campo, se transforma, como se dissesse: "Eu sou o Messi".

A maneira errada de agir contra as drogas - ANTHONY PAPA

O GLOBO - 17/03
O Congresso brasileiro está debatendo um controverso Projeto de Lei, de autoria do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), que entre outros retrocessos propõe o aumento da pena mínima obrigatória de 5 para 8 anos para crimes relacionados às drogas. Estou muito preocupado com esta proposta porque já morei em São Paulo e meu filho de 11 anos ainda vive no Estado e, principalmente, porque a história tem mostrado que esta é a maneira errada de agir - como comprova a experiência dos EUA.
Nos anos de 1980 e 1990, os EUA endureceram as leis antidrogas e adotaram a condenação obrigatória. Tais medidas em nada reduziram o abuso ou a violência relacionada à repressão, mas aumentaram significativamente a população encarcerada e as despesas prisionais.

Eu sei, por experiência própria, que a pena mínima obrigatória tem consequências desastrosas.

Em 1985, cometi o maior erro da minha vida ao aceitar US$ 500 para entregar um pacote de cerca de 100g de cocaína. Era casado, tinha uma filha pequena e lutava para pagar o aluguel.

Um colega do time de boliche perguntou se eu queria ganhar um dinheiro fácil. Quando você está desesperado, faz coisas estúpidas.

Entreguei o pacote justamente a policiais à paisana do setor de narcóticos. Fiquei chocado quando fui condenado, nos termos da Lei Rockefeller sobre Drogas e da condenação mínima obrigatória, a 15 anos de prisão. Mesmo sendo réu primário, recebi a mesma sentença aplicada a assassinos em segundo grau. Após 12 anos de cadeia, o governador de Nova York concedeu indulto e me tornei um ativista dedicado a mudar a Lei Rockefeller.

Em 1974, quando a lei foi criada, a intenção era conter a epidemia de drogas e prender os chefões do tráfico. Deu errado. Milhares de usuários de drogas, muitos deles dependentes, foram presos e tiveram suas vidas arruinadas, custando bilhões de dólares aos cofres públicos e sem afetar o mercado de drogas ilícitas.

O Congresso dos EUA promulgou em 1986 uma lei federal semelhante, obrigando juízes de todo país a adotar penas mínimas, sem atenuantes ou culpabilidade. As sentenças federais obrigatórias são aplicadas com base no tipo de entorpecente, quantidade e número de condenações anteriores. Os juízes não podem considerar fatores como a função, motivação e probabilidade de reincidência do acusado.

Hoje, cerca de 500 mil americanos estão presos por violação às leis de drogas. Os EUA prendem mais do que qualquer nação. Nas últimas três décadas, a guerra às drogas prendeu e marginalizou milhões e atingiu de forma desproporcional pobres e negros. Tal prática falhou totalmente na redução do uso problemático de drogas, transmissão de doenças relacionadas ao uso e mortes por overdose. O fracasso é tão evidente que os EUA revogaram a Lei Rockefeller em 2009 e a pena mínima obrigatória em 2010.

O Brasil já é o 4° maior encarcerador, atrás apenas de EUA, Rússia e China. Em vez de endurecer a abordagem penal e promover a internação compulsória de dependentes, o Brasil deve aprender com os erros e investir em campanhas educativas amplas sobre o uso de drogas, programas de redução de danos e tratamento para dependência, além de sentenças alternativas para réus primários não violentos. 

A revolução que não houve - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 17/03

Chávez intitulou seu regime de "revolução bolivariana", embora não tivesse feito qualquer revolução


Hugo Chávez foi, sem qualquer dúvida, um líder carismático que aliava, em sua atuação, a audácia e a esperteza política. Desde cedo, a ambição de poder determinou suas ações, que o levaram da conspiração nos quartéis às manobras populistas características de seu projeto de governo.

Sempre soube o que deveria fazer. Compreendeu, desde logo, que teria de atender às necessidades de grande parte da população que, ignorada pela oligarquia venezuelana, vivia na miséria.

Ganhar a confiança dessa gente, atendê-la em suas carências, era a providência eticamente correta e, ao mesmo tempo, o caminho certo para tornar-se um líder de imbatível popularidade. Mas, para isso, teria que enfrentar os poderosos e obter o respaldo das forças armadas, às quais, aliás, pertencia. Foi o que fez e ganhou a parada.

Outro traço característico de Hugo Chávez era o pouco respeito às normas democráticas. Se é verdade que ele chegou ao poder pelo voto e pelo voto nele se manteve, é certo também que se valeu do prestígio popular e de alguns erros dos opositores para controlar os diferentes poderes da nação venezuelana, impor sua vontade e consolidar o poder discricionário.

Nesse sentido, o que ocorreu na Venezuela é um exemplo de como o regime democrático, dependendo do nível econômico e cultural da população de um país, pode abrir caminho para um governo autoritário que, dependendo da vontade do líder, anulará a ação política dos adversários, como o fez Hugo Chávez.

Ele não só fechou emissoras de televisão como criou as Milícias Bolivarianas, que, a exemplo da conhecida juventude nazista, inviabilizava pela força as manifestações políticas dos adversários do governo.

Para culminar, fez mudarem a Constituição para tornar possível sua reeleição sem limites. Aliás, é uma característica dos regimes ditos revolucionários não admitir a alternância no poder. Está subentendido que sua presença no governo garante a justiça social com a simples exclusão da classe exploradora e, portanto, como são o povo no poder, não há por que sair dele.

Chávez intitulou seu regime de "revolução bolivariana", embora não tivesse feito qualquer revolução. O que fez, na verdade, foi dar comida e casa aos mais necessitados, o que, ao contrário de levar à revolução, leva à aceitação do regime pelos que poderiam se revoltar. Daí a necessidade de haver um inimigo, que ameace tomar o que eles ganharam. E o líder -Chávez- está ali para defendê-los.

O azar dele foi o câncer que o acometeu e que ele tentou encobrir. Quando já não pôde mais, lançou mão da teoria conspiratória, segundo a qual seu câncer foi obra dos norte-americanos. Como isso ocorreu, nem Nicolás Maduro nem Evo Morales se atrevem a explicar.

De qualquer modo, tinha que se curar e foi tratar-se em Cuba, claro, para que ninguém soubesse da gravidade da doença, que o obrigaria a deixar o governo. Sucede que o câncer não cedeu à onipotência do líder, obrigando-o a ausentar-se da Venezuela e da chefia do governo, por meses seguidos. O povo venezuelano, naturalmente, desejava saber o que se passava com o seu presidente, mas nada lhe era dito.

No entanto, Chávez deveria disputar eleições em 2012 para manter-se no governo e, por isso, voltou à Venezuela dizendo-se curado. Foi reeleito, mas teve que voltar às pressas à UTI em Havana. Daí em diante, mais do que nunca, o sigilo foi total: está vivo? Está morto? Vai voltar? Não vai voltar? Pela primeira vez, alguém governou um país de dentro de uma UTI.

Chega a data em que teria que tomar posse, mas continuava em Cuba. Contra a Constituição, Nicolás Maduro, que ele nomeara seu vice-presidente, assume o governo, embora já não gozasse, de fato, da condição de vice-presidente, já que o mandato do próprio Chávez terminara.

Mas, na Venezuela de hoje, a lei e a lógica não valem. Por isso mesmo, o próprio Tribunal Supremo de Justiça -de maioria chavista, claro- legitimou a fraude, e a farsa prosseguiu até a morte de Chávez; morte essa que ninguém sabe quando, de fato, ocorreu.

Durante o enterro, Nicolás Maduro anunciou que Chávez seria embalsamado e exposto para sempre à visitação pública, como Lênin e Mao Tse-tung. Um líder revolucionário de uma revolução que não houve. Não resta dúvida, estamos em Macondo.

Muda o Tom e não muda o tom - MARCELO PIRES

ZERO HORA - 17/03

Você conhece Tom Zé? Compositor, arranjador, cantor _ é um dos artistas mais criativos do país. É um desses caras que conseguem aproximar o universo pop e a vanguarda cultural.
Tom Zé, hoje com 76 anos bem vividos, está fazendo uma participação especial na nova propaganda da Coca-Cola, que já fala da Copa de 2014. Logo que o comercial entrou no ar, Tom Zé foi patrulhado através das redes sociais, a ponto de perder o sono e postar um texto em seu Facebook na madrugada de 8 de março.
Entre outras coisas, ele escreveu: "No ano passado, meu disco fora patrocinado pela Natura e como eu nunca tinha recebido patrocínio desse tipo _ nem de nenhum outro _ , cara, eu me senti como um artista levado em conta! (...) Atualmente, sinto paixão pela retomada do projeto dos instrumentos experimentais. (...) Aí entrou o anúncio da Coca-Cola, que, mesmo sem ela saber, patrocinaria boa parte da pesquisa. Será que o uso dos recursos obtidos com o anúncio muda a avaliação de vocês?".
O post de Tom Zé foi comentado em vários jornais. E me fez refletir.
1. O pessoal que chiou, aparentemente, considera que grana da Coca-Cola não pode, mas da Natura pode _ ninguém xingou Tom Zé quando a Natura patrocinou o disco dele. Por que será? Por que a Natura é "tupiniquim" e a Coca, "imperialista"? (Atenção, estou sendo irônico _ inclusive, diga-se de passagem, viva a Natura por patrocinar discos.)
2. Músicos vivem fazendo propaganda de cerveja no Brasil. Neste caso, estamos, inclusive, falando de bebida alcoólica. Por que Tom Zé é patrulhado por fazer a locução da Coca e outros cantores não são quando cantam e dançam o jingle de uma cerveja? Desconfio que, mais uma vez, os patrulheiros consideram cerveja um "patrimônio nacional". Mal sabem eles que a Ambev, por exemplo, é uma empresa tão multinacional quanto a Coca.
3. Tom Zé, democrático, veio a público discutir, justificou a sua participação no comercial em nome de novas experiências musicais. Acho que Tom até se explicou demais. Um homem honesto como ele merece fazer o que bem entende com o dinheiro que ganha. Se decidisse torrar o cachê em jujuba, o.k., ninguém tem nada com isso. Até porque a maioria dos patrulheiros deve tomar uma bela Coca-Cola com gelo e limão de vez em quando.
4. O comercial da Coca-Cola espelha algo verdadeiro _ Tom Zé, até no intervalo comercial, tem um discurso moderno. A Copa no Brasil será um copa "de todo mundo", a gente tem esta graça, esta multiplicidade. Ao contrário dos patrulheiros de plantão, a propaganda da Coca tem uma mensagem agregadora.
5. Vários artistas já fizeram comerciais de refrigerante, a notícia não é nova (Michael Jackson, Madonna, Lady Gaga, a lista é enorme). Amo, por exemplo, o comercial/test blind de Ray Charles para a Diet Pepsi (www.youtube.com/watch?v=JjaefqMVpcg). Veja, vale a pena.
6. Tom Jobim, nos anos 80, fez a campanha internacional da Coca . A campanha ficou linda _ mas Jobim também foi patrulhadíssimo na época, talvez pelas mesmas pessoas que hoje estão aí pegando no pé de Tom Zé. Ou seja, o tempo passa e tem gente que não muda o tom sectário do seu discurso.
Ergo, portanto, meu copo de Coca e faço um brinde a Antônio José Santana Martins, este internacional baiano de Irará, o sempre refrescante, Tom Zé.


As três origens: Cosmo, vida e mente - MARCELO GLEISER

FOLHA DE SP - 17/03

No passado, essas questões eram atribuídas só a ações sobrenaturais, produtos da intervenção divina


O tema de hoje é vasto demais para uma coluna: lidar com as três origens é trabalho para muitas vidas inteiras e, mesmo assim, sem a menor promessa de sucesso.

Mesmo que bem diferentes, tratando de partes da ciência com metodologia e princípios diversos, as três origens têm pontos em comum.

É deles que trato hoje e nas próximas duas semanas, mesmo se superficialmente. Volta e meia escrevo sobre eles nestas páginas e nos meus livros.

O primeiro ponto em comum é que, no passado não muito distante, as três origens não eram consideradas questões abordáveis pela ciência. A origem do Universo, da vida e da mente eram atribuídas a ações sobrenaturais, produtos da intervenção divina.

Que divindade seria essa depende da sua fé. Mas, em religiões distintas, só uma entidade que transcende o espaço e o tempo poderia criar o Cosmo, que existe no espaço e no tempo. Apenas uma entidade imortal poderia criar a vida e só uma entidade onisciente poderia dar inteligência às suas criaturas.

Não é, portanto, surpreendente que se encontre tanta resistência quando cientistas afirmam que estão prestes a responder a essas questões sem intervenção divina.

De acordo com a visão científica, a origem do Universo, da vida e da mente são processos naturais, que obedecem a leis e a princípios materiais. O fato de eles serem complexos e ainda obscuros não compromete o fato de as questões terem cunho científico e não religioso. O não saber é a mola propulsora da criatividade humana.

Mas até que ponto a ciência pode resolver essas questões? Vamos por partes, tratando de uma por semana. Talvez a mais "fácil" seja a origem da vida: longe estamos de compreendê-la, mas nos parece que a transição da não vida para a vida obedeceu a uma complexificação crescente das reações químicas que ocorriam na Terra primitiva: sistemas de compostos químicos tornaram-se autossuficientes e, isolados em protocélulas, foram capazes de absorver energia do ambiente e de se reproduzir de forma eficiente.

Sem dúvida, ainda não sabemos como isso se deu e, provavelmente, nunca saberemos exatamente o que ocorreu na Terra bilhões de anos atrás. No máximo, produziremos cenários viáveis de como a vida pode ter surgido aqui, dadas as condições na vigente Terra primitiva. Talvez seja possível recriar a vida no laboratório, mas não saberemos se foi assim que a vida surgiu aqui -a menos que seja demonstrado que só há um caminho bioquímico para a vida, o que acho pouco provável.

O que torna a questão da origem da vida mais "fácil" (ou mais tratável) é o nível de controle que temos sobre ela. Cientistas podem simular sistemas bioquímicos no laboratório (e vêm fazendo isso com resultados extraordinários), tanto começando com moléculas simples, como aminoácidos, como usando já o RNA e DNA do nosso código genético e testando suas propriedades em condições diversas.

Usando células, podem retirar material genético até chegar à célula "mínima" capaz de ser considerada viva. Mesmo que o caminho exato que a vida seguiu na Terra seja inacessível, a questão da origem da vida é tratável, mesmo se complexa e interdisciplinar.

Virada de página - CANDIDO MENDES

O GLOBO - 17/03
 A eleição do Papa Francisco marca uma virada de página no cenário da Igreja nos nossos dias, saindo do confronto cansativo entre conservadores e ditos reformistas, para o despontar de uma perspectiva realmente fundadora. Há que se considerar um salto, pelo que Bergoglio deixa para trás. Não deparamos mais uma dialética entre continuidade e reformismo, mas um real horizonte, na chamada do Vaticano II, de uma Igreja aberta aos sinais dos tempos, no seio da nossa pós-modernidade.
A visão do pastor, marcado pelo contato com a pobreza estrutural do dito progresso, junta-se à do scholar, no trato do cotidiano, independentemente da mensagem teológica ou filosófica de seus antecessores imediatos.

A rapidez da escolha indicaria, sobretudo, o repúdio ao status quo da Cúria, pela massa dos cardeais, até o temor de sua sobrevivência, pela volta eventual de qualquer italiano ao bispado de Roma.

A experiência do novo pontífice de ter ido ao Irã fortalece a crença de que as prioridades do Papa Francisco vão ao problema dos conflitos culturais e à luta contra o fundamentalismo cristão, como evidenciam os republicanos nos Estados Unidos.

Um primeiro papa não europeu põe em relevo mais do que uma nova polarização geográfica para o futuro da Igreja, e a usura das visões restritas do Vaticano II, levando ao sacrifício da Teologia da Libertação, na leitura duríssima que lhe deram João Paulo II e Bento XVI.

Despontaria a reabertura do ecumenismo, e a consistência de um diálogo das igrejas cristãs, fora do primado estrito em que Bento XVI constituiu a Igreja Católica.

A quase imediata eleição de Bergoglio só pode ser explicada pela rejeição funda, no inconsciente coletivo do Colégio dos Cardeais, à tolerância com as transições táticas e à mantença da indefinição sobre a Igreja que espera o nosso tempo.

O século de antimodernidade revelou a tentação do domínio do aparelho e do poder sobre o anúncio de uma Igreja, a superar a cômoda vigência de um universalismo ocidental.

Marca, ainda, a eleição de Francisco a amplitude do arco da mudança, evitando o risco de dominações do cristianismo extraeuropeu, apartando-se de uma hegemonia latente dos Estados Unidos, ou do Brasil. Surge, por aí, um pluralismo prospectivo, na verdadeira interação equilibrada entre os países da América Latina, no reacordar religioso do México, ao lado da Colômbia, ou do Peru.

A irrupção de tantas surpresas na escolha de Bergoglio só pode ecoar o recado profético do outro jesuíta, que poderia tê-lo precedido no bispado de Roma, o cardeal Martini, na sua arguta percepção de que o magistério da Igreja já sofreria de dois séculos de atraso.

O rebanho, entrevisto por João XXIII, só se capturaria pelo Concílio que, depois de 400 anos, respondesse ao profetismo, depois das certezas das docências infalíveis. E aí está uma história grávida do testemunho desses sinais, à espera da palavra do Papa Francisco.

É cedo para santificar o papa - CLÓVIS ROSSI

FOLHA DE SP - 17/03

Midia deslumbra-se com o argentino Francisco, que só teve tempo para definições espirituais


É compreensível que a massa de fiéis reunida na praça de São Pedro, durante a cerimônia fúnebre de João Paulo 2º, decretasse aos gritos: "Santo subito".

Afinal, o pontificado de João Paulo 2º durara 28 anos, tempo mais que suficiente para exibir ao mundo suas qualidades (defeitos também, mas, nessas horas, ninguém pensa em defeitos).

É um exagero, no entanto, a mídia, inclusive a do Vaticano, transformar o noticiário em torno do novo papa em culto à personalidade de Jorge Mario Bergoglio, como reproduzisse para ele o grito de "Santo subito" de oito anos atrás.

Cada detalhe de sua biografia e cada vírgula de suas palavras são apresentados em "odor de santidade", a fragrância que a tradição católica diz que emana dos santos.

Talvez o exagero se deva ao fato de que Bergoglio era um virtual desconhecido para o mundo, o que leva o jornalismo a procurar, em cada pequeno gesto e cada pequena fala, o rosto do novo pontificado.

Está sendo inútil até agora, a menos que se considere que a escolha do nome Francisco seja uma declaração de intenções, a de querer, como disse ontem, "uma igreja pobre, para os pobres". Não conheço um único religioso (ou político) que tenha defendido uma igreja (ou partido ou governo) para os ricos.

Entendo em todo o caso a carência de definições sobre a vasta e complexa agenda da igreja, que, segundo dom Cláudio Hummes, "precisa de uma reforma em todas as suas estruturas".

O papa explicou que "a igreja, embora sendo certamente também uma instituição humana, histórica, com tudo o que isso comporta, não tem uma natureza política, mas essencialmente espiritual".

Os mortais comuns aprendemos a lidar com a política, gostando ou não dela, mas o espiritual é para poucos escolhidos.

O problema é que temas essenciais da agenda da igreja, como o escândalo de pedofilia ou a polêmica em torno do casamento entre pessoas do mesmo sexo, são essencialmente humanos.

O papa precisará mesmo do odor de santidade para levar a cabo o que dom Cláudio definiu como "obra gigantesca" de renovação da igreja. Precisará também da coragem que lhe faltou durante a ditadura militar argentina, como depõe o prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel: "Não considero que Jorge Bergoglio tenha sido cúmplice da ditadura, mas creio que lhe faltou coragem para acompanhar nossa luta pelos direitos humanos nos momentos mais difíceis".

O passado, portanto, não permite sentir odor de santidade no novo papa, até porque santos se revelam exatamente nos momentos difíceis. No caso da Argentina, durante a ditadura, o que estava em jogo era condenar a barbárie, não calar-se.

Mas é hora de virar a página Bergoglio e abrir a página Francisco. O que começará a dar um rosto -santo ou não- ao novo papado serão as escolhas para os cargos vitais da Cúria, em especial a nomeação para a secretaria de Estado, o segundo cargo no Vaticano -escolha que será todo um programa de governo do novo papa e lhe dará (ou não) os primeiros "odores de santidade".

Uma nação estressada - DORRIT HARAZIM

O GLOBO - 17/03

Com a divulgação, esta semana, do novo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), compilado pela Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, ficamos sabendo que o Brasil estacionou na 85. posição entre os 187 países avaliados. Com base num índice compósito de indicadores de renda, educação (anos de estudo) e saúde (expectativa de vida), aquartelamos no mesmo patamar que a Jamaica e Omã, o que soa pouco animador mas também não quer dizer nada. Dói bem mais, nestes primeiros dias de papa Francisco, saber que estamos 40 posições atrás da Argentina. No topo da pirâmide permanece a Noruega, seguida da Austrália e com os Estados Unidos em terceiro.

Em compensação, a pirâmide se inverteria caso algum órgão mundial o grau de estresse das nações. É bastante provável que os Estados Unidos disparariam atolariam como o país menos equipado para lidar com esse malaise infiltrado na nossa vida urbana.

Um livro recém lançado por uma pesquisadora e professora de Assistência Social em Bryn Mawr, na Pensilvânia, disseca a obsessão dos americanos com estresse. Para Dana Becker, a autora do One Nation Under Stress: The Trouble With Stress as an Idea (Uma Nação Estressada: O Problema do Estresse como Conceito, pela Oxford University Press) , o distúrbio foi abraçado pela sociedade e transformado em cultura, quase status.

Declarar-se estressado passou a significar inserção e ascensão social.

Segundo dados da Associação Americana de Psicologia, 80% dos americanos consideram que o estresse faz parte de suas vidas; 73% acreditam ter a saúde afetada pelo coquetel de falta de tempo, preocupação, insatisfação, ressentimento, solidão, ansiedade, e tudo o mais que nos aflige.

Foi no longínquo final do século 19 que o neurologista novaiorquino George Beard popularizou o termo "neurastenia" como um distúrbio essencialmente americano. Para Beard, a condição representava "tanto a mobilidade social da vida [nos Estados Unidos] como o alto preço que a população paga pelo rápido crescimento industrial e pelo crescente materialismo da sociedade".

Só quase um século depois surgiu o trabalho pioneiro de um endocrinologista húngaro radicado nos Estados Unidos, Hans Selye, sobre o estresse como conceito médico e seus efeitos sobre o corpo humano. Seyle pesquisava os cataclismas psicológicos gerados pela Grande Depressão e pela II Guerra mundial quando publicou, em 1956, "O Estresse da Vida". A palavra, em português, está dicionarizada no Houaiss desde 1975.

A saudável bronca de Dana Becker, a autora do livro de agora, é com o o status que o distúrbio adquiriu na sociedade de seu país. "Estamos usando o termo para tudo – de unha encravada à guerra contra o terror", resume ela.

Becker analisou a enxurrada de trabalhos publicados sobre o estresse decorrente da jornada dupla da mulher e se impacienta com a natureza das recomendações para dirimir o problema: ingerir quenoa, praticar ioga, recorrer à auto-ajuda. Ficam em segundo plano as condições sociais que geram o estresse. "A seguir essa trilha nos distanciamos cada vez mais de medidas sociais, como tornar compatíveis horários de creche e escola com o trabalho, por exemplo. Seu olhar é o mesmo sobre outras áreas: "Pobreza tem a ver com investimentos, não com serotonina. Jovens gays precisam de políticas eficazes de combate ao bullying, e não apenas de terapia", acredita.

No ano passado, o espirituoso artigo de um escritor e cartunista americano intitulado "The Busy Trap"(algo como A armadilha de Estar Ocupado) tornou-se viral no país. Publicado nu dos blogs do New York Times, foi um dos dez textos do ano de maior repercussão. Nele, o autor, Tim Kreider, admitia não apenas que tinha tempo sobrando, mas que gostava de ser desocupado em meio a um mar de amigos se vangloriavam de não dispor de tempo livre.

Foi um assombro nacional, entre a heresia e a libertação. E antes que fosse acusado de fazer uma apologia elitista do ócio, Kreider esclareceu saber que quem tem três empregos porque precisa e gasta duas horas na condução não é uma pessoa ocupada – é uma pessoa exausta.

O que para a maioria dos americanos ainda é visto como renúncia, na Inglaterra sempre foi saudado como saber supremo: acumular o mínimo possível de obrigações, sobretudo as auto-impostas "Nossa visão de futuro deveria mirar no pleno desemprego, para que possamos desfrutar da recreação", já ensinava com convicção o escritor e inventor britânico Arthur C. Clarke, autor de "2001: Uma Odisséia no Espaço".

Assim como só poderia ser britânica uma publicação que tem por título "The Idler" (O Ocioso) e sobrevive em plena era do estresse. A missão e princípio da publicação constam dos estatutos: "Explorar alternativas para a ética do trabalho e promover a arte de não fazer nada". Na sede londrina do clube/livraria de mesmo nome, a Academia Idler, é oferecida uma variada gama de cursos e palestras - ukulele, filosofia, latim, marcenaria. Todas as quintas feiras.

Ou quase todas, para não cansar.

Autoritarismo benigno - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 17/03

SÃO PAULO - O título não esconde as intenções da autora: "Contra a Autonomia - Justificando o Paternalismo Coercitivo". A obra da filósofa Sarah Conly, disponível só em inglês, bate de frente com o virtual consenso de que as escolhas das pessoas devem ser respeitadas. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, não é um texto irremediavelmente autoritário. Embora Conly defenda a proibição do fumo, ela é simpática à legalização da maconha.

O ponto central da autora, que pretende refutar os argumentos libertários de John Stuart Mill, é o de que a psicologia reuniu uma catarata de evidências que provam que o ser humano é "intratavelmente irracional" e que isso não pode ser consertado por campanhas educativas.

Não é tanto que não saibamos o que queremos. A maioria de nós não tem dúvida de que deseja manter a saúde, guardar dinheiro para a aposentadoria etc. A questão é que, devido a uma série de vieses cognitivos, fracassamos miseravelmente em seguir uma estratégia para chegar a esses fins. É só sob essas circunstâncias, diz Conly, que o paternalismo deve entrar para dar uma mãozinha.

Até aqui eu acompanho os raciocínios da autora. Ela não me convenceu, entretanto, de que o paternalismo coercitivo, isto é, imposto por meio de normas restritivas, é superior ao paternalismo libertário proposto por Richard Thaler e Cass Sunstein, em que o poder público tenta induzir o cidadão a fazer as melhores escolhas, sem, contudo, obrigá-lo a elas.

Minha impressão é que Conly não considerou como deveria o problema da informação incompleta que, em alguma medida, afeta todas as éticas consequencialistas. Nós simplesmente não temos como calcular o valor subjetivo que o fumante atribui a suas baforadas para proclamar que elas valem menos que a sua saúde.

O livro de Conly é bom e nos faz pensar, mas continuo com Mill: "Sobre si mesmo, o seu corpo e sua mente, o indivíduo é soberano".

Sem papa, Oscar ou Nobel - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 17/03

Piadas sobre Francisco revelam recalques nacionais e nossa obscuridade sintomática


A ARGENTINA tem papa; vários Nobel e Oscar, dizia-se entre milhares de piadas que suscitou a eleição de Francisco.

O chiste tem lá suas relações com o inconsciente, mas não se trata aqui de fazer análise de recalques nacionais nem de lamentar o fracasso no BBB da fama mundial, bobagem provinciana e burra.

O Oscar é dado por uma associação comercial, kitsch como tantas, que chama a atenção por ser povoada por gente bonita, rica e famosa.

O Nobel poderia ser lá um indicador com mais tutano, ainda mais se a gente levasse em conta prêmios de ciência. Os Nobel de Literatura são o túmulo do escritor desconhecido, de tanto escrevinhador agraciado. O da Paz já premiou ex-terroristas, afora trastes demagogos.

Ainda assim, por que o país é desconhecido e ignorado como esses nomes de rua? Numa piada do ciclo papal, um cardeal diz a outros: "Não tínhamos combinado de eleger um brasileiro?". Alguém responde: "Ué, mas a capital do Brasil não é Buenos Aires?". A piada é velha, mas não seu motivo.

Para glosar Francisco, se a Argentina vive no "fim do mundo", o Brasil parece morar no mesmo endereço, mas nos fundos. Por que somos tão obscuros? Importa? Importa, mas como sintoma de deficiências e perversidades nacionais.

Somos obscuros porque somos recentes. Até 1960, não passávamos de mistura de Sudão com Império Russo perdida num canto do mapa. Tínhamos fome africana, massas de servos no sertão, éramos ainda mais iletrados do que hoje. Exportávamos café, açúcar e algodão, produtos sem rosto, afora o de Carmen Miranda. Os vizinhos do Cone Sul eram mais educados e ricos. E mais brancos, o que diminui o preconceito.

Somos separados do mundo porque falamos português, essa língua remota, quando não acham que falamos espanhol (ainda hoje, sim, até em universidades aqui nos EUA).

Somos isolados porque países grandes tendem a ser mais autocentrados. Por não temos importância militar e geopolítica. Mas moramos longe em parte porque queremos.

Somos muito ignorantes. Gostamos pouco de escola; de aprender no exterior; de falar com o exterior. Nas universidades de elite dos EUA, há relativamente menos brasileiros que mexicanos, chilenos e argentinos.

Entre 187 países, estamos em 85° lugar em desenvolvimento social (Chile: 40º; Argentina: 41º). Isso, entre outras coisas, é sinal de ignorância, de incivilidade.

Somos isolados. O Brasil é um dos países mais fechados do mundo ao comércio internacional.

Demoramos a importar tecnologias; raro importamos cérebros. Vendemos ainda produtos sem rosto, soja e ferro (nada contra) e raras Embraer. Nas prateleiras do mundo, há café da Colômbia e daqueles países miúdos da América Central e da África que confundimos no mapa. Não do Brasil.

Mas o Brasil tem o maior sistema de ciência e a economia com o maior nível de sofisticação técnica no mundo em desenvolvimento. A invenção de tais coisas ajudou a criar mais desigualdade, mas essa é outra história.

Somos assim algo obscuros porque pouco "conversamos" com o resto do mundo, embora gostemos de miçangas, "gadgets"; olhamos muito para nosso umbigo pouco educado.