O GLOBO - 25/05
Nos comentários do analista, as alusões à raça do criticado são periféricas e não removem o eixo central e o ânimo inspirador daquilo que, no conjunto, ficou redigido
Injustiça não ocorre apenas quando, equivocadamente, se condena alguém por ilicitude que não cometeu. Injustiçado também será aquele a quem, sem justa causa, se atribuir infração que jamais perpetrou. Nesta hipótese, a da acusação desarrazoada, a injustiça reside na afronta à dignidade humana do acusado.
Em 19 de agosto último, Ricardo Noblat fez publicar, no GLOBO, matéria a que intitulou “Quem o ministro Joaquim Barbosa pensa que é?”, e, por ela, agora responde a ação penal em que o Ministério Público Federal, agasalhando representação do ilustre presidente do STF, increpa-o dos crimes de difamação, injúria qualificada e preconceito racial.
Seu permanente leitor, penso que o texto de Noblat não está entre os melhores que produziu. Duro, rigoroso, quiçá exagerado em alguns dos seus trechos, o escrito não se afeiçoa àquilo que o jornalista costuma lavrar. Todavia, daí a entrever, na crônica, suficiente fundamento para a persecução criminal desencadeada, há distância que a razoabilidade jurídica não autoriza percorrer.
Aprendi, com os mestres e a convergente orientação pretoriana, que as criações literárias, inclusive as jornalísticas, devem ser interpretadas no seu todo, na íntegra harmônica de suas ideias e asserções, rejeitando-se o apego isolado a uma ou a algumas frases. Reverente a esse pacificado entendimento, não consigo enxergar, na redação do articulista, a tipicidade ou o dolo específico que pudesse submetê-lo ao processo no qual foi tornado réu.
Pelo contrário, o que lá vislumbrei foi a democrática manifestação de um juízo crítico, embora veemente. Direito à crítica, esse que, especialmente, aos operadores da imprensa, a Constituição resguarda como garantia mínima indispensável ao sadio exercício profissional. E, mais, jus criticandi que, alçado à categoria de regular exercício opinativo, particularmente encontra aplicação sempre que o atingido for pessoa pública, figura notória, agente estatal, administrador, legislador ou juiz.
Ao longo da história, vários outros magistrados com assento na Corte Suprema Brasileira receberam inflamadas exprobações de jornais, revistas e emissoras. Aliás, no famoso julgamento do mensalão isso se fez frequente e monocórdico, ao sabor dos votos que Suas Excelências proferiram condenando ou absolvendo, majorando ou reduzindo penas, provendo ou desprovendo recursos.
Não difama servidor público de amplíssima notoriedade quem, exercitando juízo crítico, acertada ou erradamente, acusa-o de “tratar mal seus semelhantes, a debochar deles, a humilhá-los’’, ou de recusar “qualquer concessão à afabilidade’’, ou de sustentar “soberba”. Note-se que, ao mesmo tempo — e elogiosamente —, o jornalista reconhece que “A maioria dos brasileiros o admira”, e também que, entre os candidatos ao Supremo, “Joaquim era o que tinha o melhor currículo.”
Ademais, nos comentários do veterano analista, as alusões à raça do criticado são periféricas e não removem o eixo central e o ânimo inspirador daquilo que, no conjunto, ficou redigido. É dizer: apenas uma leitura estrábica ao núcleo essencial da peça jornalística — não jurídica, portanto —, levaria à conclusão de nela existir prática, induzimento ou incitação ao racismo.
Em suma, e com todas as vênias, realmente Noblat foi injustiçado.
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