O Estado de S.Paulo - 25/05
A qualidade da democracia depende tanto das características de suas instituições formais, tomadas em conjunto, quanto de práticas não codificadas que se expressam na ação e na palavra dos atores políticos. Esta segunda dimensão - mais próxima dos hábitos e costumes que das instituições formais (partidos, Congresso, Judiciário, etc.) - é essencial não só para o modo como o poder é exercido, mas também para fortalecer (ou debilitar) uma cultura cívica democrática sem a qual as instituições formais da democracia não fincam raízes na sociedade.
No Brasil, tão importante quanto aperfeiçoar as instituições formais (principalmente o sistema eleitoral) é pôr em discussão, na expectativa de alterá-las gradualmente, as práticas não codificadas que caracterizam a política brasileira atual. Neste artigo quero concentrar-me em práticas discursivas que rebaixam a qualidade do debate público e da democracia em nosso país. Estas podem mudar mais rápido se os líderes políticos assim o desejarem.
Embora não sejam os únicos, os principais responsáveis por esse rebaixamento são Lula e o PT. Desde de que chegaram ao poder, o ex-presidente e seu partido investiram em três componentes de uma mesma estratégia discursiva: a estigmatização do governo FHC e do principal partido da oposição, o PSDB; o autoengrandecimento da era Lula como o marco fundacional de um novo País, que deixava para trás 500 anos de atraso; e a construção da imagem do ex-presidente como grande responsável, por suas origens e por suas decisões, pelo resgate de milhões de brasileiros da pobreza e pela tão decantada ascensão de parte deles à "classe média".
Para o sucesso dessa estratégia, financiada com vultosos recursos públicos, recorreu-se seletivamente a toda sorte de inverdades e representações distorcidas a respeito do passado e dos adversários do governo. Tão grave quanto foi a recuperação de um velho arquétipo da política moderna: a personificação do Estado na figura de um líder benfeitor que distribui benefícios ao povo carente. A nova versão elaborada por Lula e pelo PT é mais sofisticada do que a que caracterizou o clientelismo tradicional ou o populismo dos anos 1950 no Brasil. Mas é uma enorme regressão quando comparada ao discurso do próprio PT e de outras forças políticas da frente democrática contra a ditadura, parte delas hoje no PSDB. A partir de ângulos e com ênfases diferentes se construiu ali a ideia-força de que a real democratização do País viria pela organização de sujeitos sociais coletivos com menor dependência do Estado e maior capacidade e autonomia para realizar projetos políticos abrangentes, num quadro de pluralismo democrático.
É incrível notar como esse discurso cedeu lugar à narrativa ufanista do líder-Estado-governo-partido "do povo" e, quando o ufanismo não mais funciona, à ladainha da "ingratidão" ao governo e ao PT. Ingrato, no atual vocabulário petista, é o pobre que virou "classe média" e vai às ruas protestar contra o governo, como disse em tom confessional Gilberto Carvalho, ou a elite, que "nunca ganhou tanto dinheiro porque eu consertei o País", mas não poupa críticas ao atual governo, como disse Lula com a modéstia que lhe é peculiar.
Como não poderia deixar de ser, para quem "em eleição faz o diabo", outra pérola recente, esta de Dilma Rousseff, o governo agora dobra a aposta na estratégica discursiva adotada desde 2003. No caldeirão do marqueteiro oficial já está pronta a poção mágica que pretende assegurar a reeleição da atual presidente. Ela consiste em fazer crer que as eleições deste ano são uma disputa entre a fada madrinha, Dilma, que recebeu seus dons do rei-pai, Lula, e a bruxa má, Aécio Neves. A Eduardo Campos reservou-se o papel de bruxa má disfarçada, aquela que não parece, mas é ruim que só.
Fica, assim, a disputa eleitoral reduzida a uma fábula infantil e os eleitores, à condição de crianças. Estas, se não convencidas da bondade da fada madrinha (ou "rainha dos pobres", como a chamou o governador Jaques Wagner), devem ser persuadias da maldade do seu principal adversário. Para outra coisa não serve a campanha de medo deflagrada pelo PT na TV e no rádio nas últimas semanas.
Num nível um pouco mais elaborado, o governo busca pintar o quadro eleitoral como a contenda entre dois "modelos socioeconômicos" radicalmente diferentes: um comprometido com as causas do povo e do Brasil; outro, antissocial e entreguista. Qualquer observador minimamente isento e informado sabe que esse quadro não retrata a realidade dos fatos. Nem um eventual futuro mandato de Dilma faria o País abraçar um "modelo bolivariano" nem uma vitória de Aécio nos levaria à adoção de um "modelo neoliberal". Claro que há diferenças entre os dois principais candidatos, tanto programáticas como, principalmente, no modo de organizar o Estado, exercer o governo e gerir as políticas públicas. Há também diferenças entre eles e Eduardo Campos, que se empenha legitimamente em marcar uma terceira via. Eleições devem pôr essas diferenças em contraste e em confronto.
Outra coisa é a dramatização artificial dessas diferenças. A estratégia pode até ser eficiente do ponto de vista eleitoral - resta saber para quem -, mas produz pelo menos dois efeitos negativos para o fortalecimento de uma cultura cívica democrática. De um lado, afasta ainda mais o cidadão comum da política, uma vez que nele reforça a suspeita de que as eleições têm muito de uma farsa teatral em que o objetivo dos protagonistas está longe de coincidir com as expectativas da plateia. De outro, alimenta, sobretudo na internet, um ambiente de intolerância e surdez aos argumentos do outro, que são a própria antítese do debate democrático.
Tomara a sociedade reaja a tempo de mudar o rumo da prosa eleitoral. Do jeito que a coisa vai, não é bom para o País.
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