O GLOBO - 25/05
Arsenal de pretextos para a complacência com a inflação é uma espécie de ressurreição torta da ‘inflação estrutural’
As primeiras teorias sobre a inflação eram como a cartografia primitiva: roteiros para a imaginação muito mais que representações científicas e confiáveis da verdadeira geografia.
A inflação surgiu mais ou menos na mesma época e lugar que o “papel moeda”, sendo muito natural e espontâneo que se associasse uma coisa à outra. Afinal, a inflação é a perda de poder aquisitivo da moeda, simples assim.
No Brasil, entretanto, logo emergiu uma visão alternativa e imaginosa que tomava emprestada à engenharia uma palavra que mudaria para sempre nossa maneira de olhar as mazelas da economia: dizia-se que a inflação brasileira era “estrutural”.
Esse palavreado nos colocava em pleno Quartier Latin e, com toda razão, conferia a devida complexidade ao fenômeno, que deixava de pertencer às más intenções de governantes fabricantes de papel pintado e passava ao domínio de criaturas temíveis, como os monstros que ilustravam os espaços vazios dos mapas de antigamente: latifúndios, gargalos, cartéis e pontos de estrangulamento. Tinha-se, assim, de forma nem tão sutil, uma transferência da culpa pelo problema, um truque de grande impacto sobre os debates públicos sobre o combate à inflação.
A “inflação estrutural”, em suas múltiplas encarnações, sempre compreendia uma variação recorrente de um preço importante, geralmente os de alimentos, mercê da (supostamente) baixa produtividade no setor causada pela estrutura agrária dominada pelo latifúndio, e da repercussão viciosa do “choque de oferta” patrocinado pelos oligopólios e oligopsônios.
Não era uma boa teoria, tanto que caiu para a gaveta das curiosidades próprias dos primeiros anos em que o fenômeno se apresentou. Mas a mensagem central resultou duradoura: essa inflação que tinha “raízes no setor real” deveria ser combatida através de reformas que atacassem “estruturas”, agrária ou de classes sociais, de tal sorte que parecia tolo pensar que a política monetária pudesse afetar o poder de compra da moeda. A estabilização apenas ocorreria com a reforma agrária, ou com o socialismo.
O legado mais duradouro e popular da “teoria da inflação estrutural” era tão simples quanto devastador: a (suposta) inutilidade das políticas de estabilização convencionais, argumento que ainda soa como poesia para os amigos da inflação.
Poucos se dão conta da importância e da contundência desse drible dado pelos “estruturalistas”: nunca se fazia uma defesa aberta da inflação, mas um ataque às políticas monetárias ortodoxas e à austeridade. Em retrospecto, deveria ser claro que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo” e que os “estruturalistas” estavam trabalhando a favor da inflação, às vezes admitindo “expropriar os rentistas”, ou “tributar a riqueza ociosa”, um argumento que frequentemente se associava a Lord Keynes.
Porém, os “desenvolvimentistas” sempre conseguiam se afastar da (autoria da) inflação, que se tornava, assim, uma criatura órfã, um mal impessoal, um cadáver sem o assassino para se tornar um inimigo público. Quem eram os amigos da inflação? Não deveria ser difícil apontar os culpados, mas o fato é que o Brasil nunca teve um rosto para tornar o patrono da inflação. Quem percorrer os cadernos de imagens dos livros sobre a inflação, como o da jornalista Miriam Leitão, vai encontrar fotos de prateleiras vazias, máquinas de remarcação e cédulas cheias de zeros ou carimbos, mas nenhum economista desses que criticam os “métodos convencionais” de combate à inflação.
Em tempos mais recentes, os amigos da inflação ampliaram o arsenal de pretextos para a complacência com a inflação com uma espécie de ressurreição torta da “inflação estrutural”, eis que a inflação observada no segmento de serviços do IPCA — que está rodando na faixa de 10% anuais — estaria associada à ascensão da classe média, processo desejável, uma espécie de “inflação do bem”, refletindo fenômenos fora do alcance da política monetária. O inflacionismo estaria em busca de uma aliança com o politicamente correto.
Há enorme heterogeneidade dentro de “serviços” no IPCA, com uma infinidade de histórias sobre mercados específicos. Há fenômenos associados ao ciclo imobiliário (aluguel, condomínio, estacionamento), outros às ventanias do turismo (passagens aéreas, hotéis, motéis, espetáculos), e os serviços que incluem componentes digitais (celulares, internet, fotocópia). Há a “inflação médica”, decorrente de mais “tecnologia embarcada”, mas o setor seguramente possui economias de escala, o mesmo valendo para os serviços educacionais. E há os itens afetados pelo salário mínimo (consertos e serviços pessoais), e também a deflação dos eletrônicos (duráveis, ou mais baratos ou melhores).
O que há de comum nesses enredos?
Existem centenas, talvez milhares de histórias sobre mudanças de preços relativos, vale dizer, sobre “inflação (ou deflação) estrutural”, pois o sistema de preços está sempre a vibrar, como um organismo vivo e irrequieto. Quem tem cinquenta teorias sobre inflação estrutural na verdade não tem nenhuma. Se existe algum traço comum em cada uma dessas narrativas de “choques de oferta” é que todos os preços são denominados na mesma moeda, que pode valer mais ou menos dependendo da política monetária.
A verdadeira discussão não é sobre se a inflação nos serviços é “benigna”, mas sobre complacência com a inflação. A alusão a uma nova inflação estrutural serve apenas para trazer de volta uma tese conhecida e maléfica: se há uma boa explicação “não monetária” para a existência da inflação, segue-se que a política monetária não funciona, ou produz um desemprego desnecessário para corrigir o incorrigível.
A própria presidente disse recentemente que reduzir a meta de inflação de 4,5% (na verdade 6,5%) para 3% faria o desemprego pular para 8% ou mais.
De onde saiu essa matemática?
Se fosse verdade, a redução na taxa de inflação de 916% para 5%, observada entre 1994 e 1997 (taxas acumuladas para o ano calendário), teria criado um caos. Em vez disso, o desemprego oscilou de 5,1% para 5,7%. Para quem não é do ramo parece mágica, não é mesmo?
O fato é que as autoridades governamentais prosseguem com o velho truque de antagonizar o combate à inflação e não a inflação, assim se esquivando canhestramente de fazer uma defesa aberta dessa sua criatura amiga, órfã apenas na aparência, e que parece nascer de causas naturais sem que ninguém lhe dê o que comer.
Quem são os amigos da inflação?
Basta olhar para os inimigos do combate à inflação.
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