O GLOBO - 25/05
A notícia começou a correr de boca em boca no meio da tarde de terça-feira. A cidade iria parar. Não uma cidade qualquer, mas a maior do Brasil, a que costuma medir seus engarrafamentos por quilômetros que parecem sempre cada vez mais esticados. Os trabalhadores voltaram para casa com dificuldade. No dia seguinte, amanheceram mais cedo para a luta de chegar ao trabalho.
Com o relato dessas cenas, expostas nos noticiários de TV, rádio, jornal, blogs e sites, é que li a entrevista do sociólogo Domenico De Masi, comemorando, mais uma vez, em seu novo livro, a suposta indolência brasileira. Segundo ele, graças aos índios, o ideal da eficiência e do produtivismo não pegou o Brasil. “Os índios não trabalhavam. Não era necessário. Tudo estava na natureza. Não precisavam nem se vestir porque o clima era bom. O brasileiro herdou do índio esse senso de ócio.”
É difícil encontrar visão mais superficial e estereótipo mais antigo sobre o Brasil, em geral; os índios, em particular. Se ele queria nos elogiar, escorregou para um lugar comum distante da realidade em todas as áreas.
Naquela quarta-feira, milhões de trabalhadores tentariam superar o quase insuperável obstáculo de uma cidade enorme com uma greve de ônibus para ir ao trabalho. Há quem tenha andado quilômetros, mesmo sem saber se ao fim do dia conseguiria voltar. Aconteceu o mesmo dias antes no Rio, com a vantagem que a greve foi anunciada no fim de um dia para começar no outro, e as pessoas puderam se organizar.
Domenico De Masi é simpático, bonachão, diz gostar muito do Brasil e tem boas ideias sobre abrir espaço no cotidiano para a criatividade e o prazer, mas ele tem errado na avaliação do que somos nós. Às vezes, até parece que o sociólogo italiano tem razão quando vemos a comparação dos índices de produtividade do Brasil comparado a outros países. Eles estão baixos e em queda. Somos reprovados em qualquer ranking feitos pelas várias entidades que se dispõem a comparar a produtividade no mundo.
O problema não é que o trabalhador brasileiro não queira ser produtivo, é que ele enfrenta barreiras demais. Não é por falta de empenho do trabalho, mas sim pelos enormes e conhecidos obstáculos que existem para que a economia seja mais produtiva. Governo após governo, especialistas apontam o dedo para a infraestrutura deficiente, a logística irracional, o excesso de burocracia, os impostos muitos e complexos, as dificuldades criadas pelo Estado que impedem que a produtividade avance.
O trabalhador brasileiro dedica 150 dias de trabalho do ano apenas para pagar impostos, calculou-se na semana passada. E, mesmo assim, diligentemente ele vai ao trabalho nesta corrida diária de obstáculos. A piora da mobilidade urbana tira horas e forças dos trabalhadores nas empresas e, pior, tempo de convívio com a família. A verdade sobre os brasileiros é que trabalhamos muito, a despeito das dificuldades criadas pela falta de investimento na limpeza do caminho que nos leva e traz do trabalho e escoa mercadorias.
A ideia da abundância da natureza tornando os índios indolentes ignora questões elementares. É difícil viver da floresta, preservando-a. Não é fácil acordar a cada dia e buscar alimentos que não estão disponíveis numa prateleira de supermercado, têm que ser extraídos, preparados, caçados, pescados, mantendo-se o delicado equilíbrio de uma floresta. Sobre o clima ameno que dispensava roupa, seria bom contar aos desavisados que dentro de uma floresta tropical a temperatura cai fortemente à noite. Não é fácil a tarefa de se adaptar a essas oscilações fortes.
O ócio criativo contém uma ideia melhor do que Domenico de Masi sugere ao explicar o Brasil e sua suposta negação do “produtivismo” e eficiência. Como “produtivismo”, ele explica que vem da influência ruim dos americanos. No mundo globalizado, todos temos que ser eficientes e não há nada de errado nisso, nem o conceito pertence a um país.
Já fomos vítimas das simplificações grosseiras do pensamento etnocêntrico estrangeiro várias vezes. Mas, numa semana em que o Brasil exausto lutava para trabalhar, para elevar sua produtividade, contra todos os obstáculos criados pela conjuntura e por problemas de infraestrutura, foi pior. Temos qualidades a serem ressaltadas por quem nos olha com visão amiga, mas a indolência não é elogio, é ofensa. Que o simpático italiano se aprofunde mais em nos entender. Ele encontrará o que elogiar.
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