O GLOBO - 14/02
Na esteira do desalento com a inconsequência da atuação do governo, vem-se disseminando o temor de que o país acabe transformado numa imensa Argentina. Embora o pesadelo seja compreensível, não faltam bons argumentos para convencer os mais pessimistas de que ainda falta muito para que a Brasília de Dilma se converta na Buenos Aires de Cristina. Mas há que se reconhecer que, em certas áreas, a argentinização vem avançando de forma assustadora. Um bom exemplo é o do setor elétrico.
Esse é um setor em que, há muitos anos, o governo se tem permitido ser particularmente irracional. Em meados de 2003, a então ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, apresentou uma proposta de reestruturação do setor elétrico que simplesmente não fazia sentido. Entre pontos inegociáveis e delírios voluntaristas, a proposta mostrava completo descaso por incentivos e fatores de risco que pautam decisões de investimento no setor. Bem mais de um ano se passou até que, com o país mais uma vez convertido em custoso navio-escola, especialistas de fora do governo conseguissem convencer a ministra a transformar a proposta em algo menos rudimentar.
Mas o vezo voluntarista e o desprezo pelo mercado não puderam ser eliminados. E, não tendo conseguido construir um ambiente regulatório que engendrasse tarifas módicas naturalmente, o governo vem, já há algum tempo, tentando assegurar modicidade tarifária na marra. No caso das hidrelétricas da Amazônia, fixou tarifas arbitrariamente baixas e, depois, despejou sobre os projetos de investimento todo o dinheiro público que se fez necessário para torná-los viáveis .
Há cerca de um ano e meio, preocupado com a inflação, o governo decidiu reduzir tarifas de energia. Poderia ter diminuído a carga tributária que incide sobre as tarifas. Mas preferiu partir para a redução de preços pagos aos produtores de energia, por meio de truculenta antecipação do vencimento dos contratos de concessão. Até hoje o setor não se recuperou da desorganização deflagrada por essa intervenção.
Tendo conseguido impor expressiva redução tarifária, o governo logo se deu conta de que tal redução estava fadada a ser revertida, em decorrência da necessidade de repassar aos consumidores os custos de operação das usinas térmicas. E, para evitar que isso ocorresse, permitiu-se, mais uma vez, adotar solução flagrantemente populista: repassar a conta das térmicas para o Tesouro.
Ter tudo isso em mente ajuda a perceber com mais clareza o entalo em que agora se meteu o Planalto. A precariedade do suprimento de energia elétrica com que hoje conta o país tornou-se evidente. E a probabilidade de que um racionamento se torne necessário já passou a ser preocupante.
Em condições normais, caberia ao governo reconhecer o problema e adotar medidas preventivas de racionalização da demanda, como elevação de tarifas e estímulos à conservação de energia. O grande problema é que, a sete meses e meio das eleições, o governo se recusa terminantemente a reconhecer a simples existência do problema. E é fácil perceber por quê. Tendo feito o que bem entendeu no setor por 11 anos, a presidente não tem a quem culpar. É a única e exclusiva responsável pelo quadro de precariedade da oferta de energia que hoje se vê. A palavra de ordem, portanto, é não admitir, sob nenhuma hipótese, que o problema sequer exista. Negar, negar e negar.
Salta aos olhos que essa negação, conjugada com a aposta desesperada nas águas de março, é estratégia altamente arriscada. E, até que saiba o desfecho da aposta, o governo estará exposto a grande desgaste. Para evitar que o custo de operação das térmicas seja repassado aos consumidores, o Tesouro terá de arcar com gastos da ordem de R$ 18 bilhões em 2014. Se, num surto de inconsequência, o governo decidir ir em frente com o repasse desse custo para o Tesouro, quando o país se defronta com um quadro de oferta de energia tão precário, o escandaloso populismo da decisão deverá marcar alarmante escalada no processo de argentinização do setor.
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