O GLOBO - 16/01
A profecia do declínio dos EUA é uma narrativa política cíclica que descreve trajetórias balísticas. No ciclo mais recente, o lançamento do projétil do declinismo coincidiu com o colapso financeiro de 2008, um evento que lhe conferiu alta velocidade inicial e extraordinário alcance. Contudo, o projétil atingiu o apogeu anos atrás e já ingressou na etapa descendente de sua trajetória. Nessa etapa, os países que acreditaram no mito declinista, como o Brasil, precisam se ajustar a um cenário externo inesperado.
Os arautos do antiamericanismo são, quase sempre, adeptos fervorosos do declinismo. Eles imaginam-se pensadores originais, mas estão enganados: as fontes do declinismo encontram-se na própria tradição política americana, que gera versões liberais e conservadoras dessa profecia. Nos EUA, desde o sobressalto causado pelo lançamento do Sputnik soviético, em 1957, emergiram cinco narrativas declinistas sucessivas em número igual de décadas. Do “Vietnã” ao “Afeganistão e Iraque”, da “estagnação econômica” à “crise financeira global”, a música da ruína reproduz melodias conhecidas, ainda que sedutoras. A diferença entre o declinismo “made in USA” e o declinismo propagado fora dos EUA não está na composição, mas no tom dos instrumentos: melancolia, num caso; júbilo, no outro.
O declinismo é uma fábula e, como tal, “não trata de verdades, mas de consequências”, assinalou Josef Joffe. A narrativa da ruína americana é, portanto, impermeável ao teste da validação empírica, o que explica sua inesgotável capacidade de renascer ciclicamente, com a mesma força persuasiva de sempre. Os declinistas tocam uma música destinada a configurar crenças e mudar atitudes políticas. Nas suas versões autóctones, a finalidade é perturbar os espíritos para vender uma ideia de redenção — e, assim, derrotar a profecia insuportável. Pense, por exemplo, no vaticínio de Samuel Huntington sobre os efeitos corrosivos da imigração hispânica na coesão da sociedade americana, um artefato “sociológico” destinado a fornecer argumentos eleitorais para a ala direita, nativista, do Partido Republicano.
Fora dos EUA, a narrativa declinista é um componente crucial nos discursos antiamericanos de correntes políticas avessas ao liberalismo, ao modernismo, ao cosmopolitismo e ao judaísmo. Meio século atrás, o egípcio Sayyd Qutb formulou a doutrina da jihad contemporânea sob o impacto duradouro de uma viagem aos EUA na qual concluiu que o Ocidente perdera a vitalidade moral, condenando-se a um declínio irreversível. A França de Vichy era declinista, tanto quanto é, hoje, a Frente Nacional, de Marine Le Pen. Entre as elites francesas, conservadoras ou social-democratas, o prognóstico da decadência americana é algo próximo a um consenso nacional, com raízes psicológicas fincadas na percepção compartilhada do declínio francês. Há uma década, a direção do Partido Comunista Chinês promoveu um seminário fechado sobre a história da ascensão e do declínio das grandes potências, extraindo a reconfortante conclusão de que a “Pax Americana” cederá lugar a uma “Pax Chinesa”.
A profecia declinista perpassava os discursos de Nikita Kruschev, mas só contaminou de fato o pensamento da esquerda marxista depois da queda do Muro de Berlim. O filósofo-militante alemão Robert Kurz fabricou uma versão pretensamente sofisticada da venerável narrativa no livro “O colapso da modernização”, de 1991, que interpreta a implosão do “império soviético” como sinal periférico anunciador de uma crise terminal do sistema capitalista. A tese rocambolesca converteu-se, instantaneamente, numa espécie de amuleto das correntes de esquerda engajadas no movimento antiglobalização. Nesses círculos, o nome de Kurz brilhou intensamente durante a pequena recessão do início do século e, novamente, na hora da crise global deflagrada pela queda da Casa dos Lehman Brothers.
A esquerda latino-americana, vincada pelos nacionalismos e atraída por caudilhos, sempre foi esperançosamente declinista. A “revolução bolivariana” de Hugo Chávez reativou a profecia da decadência americana, que encontra fortes ecos no PT. A crença na falência histórica do (mal denominado) “capitalismo liberal” provocou uma notável inflexão na política externa brasileira, deixando como herança o isolamento comercial do Brasil na concha de um Mercosul sem horizontes. No auge do ciclo declinista mais recente, Lula convenceu-se da eficácia do capitalismo de estado e, para regozijo comum dos seus “desenvolvimentistas” e do alto empresariado associado ao Palácio, soltou as rédeas do crédito público subsidiado. Desse autoengano nasceu o “pibinho da Dilma”, um reflexo da retração da produtividade de nossa economia.
Obviamente, todas as curvas balísticas ingressam, em algum momento, na etapa descendente. O ano de 2014 abre-se com o prognóstico de um crescimento global (calculado à base da paridade do poder de compra) próximo a 4%, quase um ponto percentual mais que o do ano passado. Depois de muitos “anos chineses”, o motor da expansão será, uma vez mais, a economia americana, que experimenta os efeitos combinados da recuperação dos preços dos imóveis e da explosão da produção interna de energia. Novamente, o declinismo entra em declínio, recolhendo-se à hibernação até que algum evento geopolítico ou econômico impactante propicie a sua reanimação.
Nessa etapa, carentes de argumentos verossímeis, os profetas do declinismo tendem a enrijecer sua linguagem, refugiando-se nas mais desvairadas hipóteses conspiratórias. A fórmula manjada do “ataque especulativo” (contra o BNDES, na versão de Luciano Coutinho, ou contra a política fiscal do governo, na de Arno Augustin), inscreve-se nesse padrão facilmente reconhecível. A “guerra psicológica adversa”, invocada por Dilma Rousseff, pertence ao mesmo arsenal de bombas sujas. Eles não aprenderam nada. Azar do Brasil.
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