O GLOBO - 22/12
Uma vez, em Hamburgo, gritei desprezo pela Europa, mencionei Hitler e senti-me tomado por uma fúria brasileirista e autocentrada
Uma vez, em Hamburgo, durante uma excursão europeia, perdi o controle dos meus nervos. Pode ter sido o show do “Circuladô” ou o do “Livro”, o certo é que Jaquinho Morelenbaum estava comigo. O show tinha muitas mudanças de clima e sutis dinâmicas. Todas as apresentações por cidades da Europa vinham sendo muito bonitas, com as plateias reagindo muito bem (sobretudo na Itália, onde nos apresentamos em várias cidades, a concentração e o calor do público nos contagiando). Em Hamburgo éramos parte de um festival e nos apresentávamos numa tenda grande e bem construída. Na plateia havia muitos jovens alemães e um número considerável de brasileiros — e de alemães não tão jovens que tinham relações com o Brasil. No fundo e nas laterais do auditório bebidas eram vendidas. O grupo que se colocou no centro e mais próximo ao palco acompanhava o que fazíamos, mas era (assim como nós) permanentemente incomodado pelo barulho da falação descuidada dos cervejeiros, muitos esperando uma atração de r&b americana que entraria depois. O barulho ficava mais agressivo quando canções suaves eram executadas. Numa determinada altura, falei, entre uma música e outra, pedindo silêncio. Nem por curiosidade a respeito do que estava sendo dito as pessoas silenciavam. Talvez umas muito poucas. As vozes altas se destacavam — predominantemente em alemão — sobre a relativa quietude. Eu disse, em inglês (a língua internacional, a dos cinco olhos), que os alemães eram famosos por serem ordeiros: nós, brasileiros, não tínhamos essa reputação, mas gostávamos de música. Eu pensava no show da Praça do Canhão, em Realengo, onde, meses antes, uma multidão de perder de vista fazia um silêncio religioso para ouvir “Circuladô” ou “Itapuã”.
Depois do espetáculo — que, afinal, pôde ser apreciado com moderação pelos que estavam atentos a ele — veio conversar comigo um amigo (um ex-amigo, temo) alemão que fala português. Ele estava acompanhado de uma namorada (ou esposa) brasileira. Enquanto ele tentava me convencer, em tom carinhoso, de que não teria sido necessário reclamar do barulho (explicando de que tipo de plateia se tratava), a brasileira me olhava com cara séria e afirmava que quem estava fazendo barulho eram os brasileiros. Bem, era claramente perceptível para mim que esse não era o caso. Talvez houvesse brasileiros entre os barulhentos, mas a maioria deles compunha o centro atento que, inclusive, às vezes pedia silêncio também. O fato é que o comentário da moça me irritou desproporcionalmente — e comecei a falar alto e zangado contra sua hipótese, contra aquele evento, contra os alemães em geral. Havia cansaço dos muitos dias de viagens, desconforto de estar longe de casa, e a intolerância com o sintoma de vira-latismo da interlocutora. Fiquei exasperado. Gritei desprezo pela Europa, mencionei Hitler (coisa que entra mal em quase toda discussão), senti-me tomado por uma fúria brasileirista e autocentrada que desfez o sorriso do rapaz.
De noite, na cama do hotel, senti remorso e vergonha de minha reação. E ainda hoje, passados tantos anos, é um dos momentos de minha vida que mais me causam inquietação íntima quando estou sozinho e conversando comigo mesmo. Isso só tem feito crescer com a tendência ao barulho das plateias brasileiras. Parece que, para me ensinar amarga lição, um deus fermentou a má educação dos meus compatriotas e, do Tim Festival aos shows nos falsos canecões que se construíram pelo Brasil, passando por praças e ruas, fui vendo crescer, ano a ano, o barulho nos nossos locais de espetáculos. Curiosamente, atribuo esse triste fato a outro aspecto do mesmo vira-latismo que julguei notar na companheira do simpático alemão. Ao mesmo tempo em que sinto quão profundamente errado eu estava ali, observo que a confusão que se fez entre potência de som para estádios e “primeiro mundo” elevou o volume das caixas de som em qualquer ambiente (com espectadores brasucas reclamando de “baixo volume” em shows como o de Devendra), o que contribuiu para a gritaria desleixada. Depois de anos tendo de me submeter a isso, cantei em uma praça de Buenos Aires, só de violão, e o silêncio me emocionou. Dedico esta campanha pelo volume adequado e pela fruição atenta ao alemão de quem acho que perdi a amizade. Sempre sinto que ele e sua mulher estão presentes em cada show com brasileiros ruidosos em que canto ou a que assisto. Não esqueço a contribuição da axé music, o carnaval rock-festival de Salvador, para esse estado de coisas. O barulho na Bahia tomou conta de tudo. O Brasil ecoa. Temos de achar o caminho do autorrespeito.
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