O GLOBO - 01/12
Muitos de nós — inclusive eu, é claro — podemos estar chegando a conclusões ou fazendo comentários sobre o mensalão que se revelarão completamente equivocados
No domingo passado, andei repisando aqui umas verdades, bem sei que meio cediças, sobre como os contemporâneos dos fatos se enganam quanto às consequências ou a importância daquilo que testemunham. Tem sido sempre assim e as gerações presentes não constituem exceção. Muitos de nós — inclusive eu, é claro — podemos estar chegando a conclusões ou fazendo comentários sobre o mensalão que se revelarão completamente equivocados, aos olhos de nossos pósteros. Ninguém sabe, nem pode saber, o que será relevante no futuro e o que será esquecido.
E a verdade também é que, aqui entre nós, ando meio empanzinado com esse dramalhão do mensalão. E ouso crer que muitos de vocês também. Sim, manda a boa cidadania que nos mantenhamos atentos à conduta dos nossos governantes e líderes políticos, tudo bem. Mas isto não significa sucumbir sob a aluvião de artigos, reportagens, entrevistas, discursos e pronunciamentos proféticos que nos vem soterrando. Qual é o problema do mensalão, que é que vai acontecer? Vão reverter alguma sentença? Vão continuar a dizer que o julgamento foi ilegítimo, sem observar que daí se segue a ilegitimidade das instituições, inclusive as que mantêm os atuais governantes no poder? Só é legítimo o que interessa a eles, só vale quando é a favor? Como sabe qualquer torcedor, o choro é livre, mas não altera o placar, nem confere título.
Até admito que nossa tradicional inexperiência em prender gente fina e ladrões de milhões venha rendendo episódios cômicos ou dramáticos, conforme o ponto de vista. Certas situações são patéticas e não deve haver regozijo com o infortúnio de ninguém. Como querer, no Brasil, um cárcere com um mínimo de dignidade, sem que isto seja um privilégio? Eles provavelmente dirão, acredito que com sinceridade, que não querem privilégios, mas o tratamento devido a qualquer presidiário. Isto, contudo, só poderia advir de uma gigantesca reforma no sistema prisional, que não se faz da noite para o dia. Portanto, o tratamento que eles terão, hoje, é tão igual ao dos outros presidiários quanto os tratamentos do Sírio-Libanês são aos do SUS. São iguais, mas os governantes nunca se tratam pelo SUS, é sempre no Sírio-Libanês.
E a verdade é que, sem nenhuma ironia, não haveria justiça alguma em fazer com que os condenados do mensalão fossem postos em celas infectas e superlotadas, sujeitos a condições desumanas e cruéis, como é frequentemente o caso no Brasil. Não há justiça em fazer com que qualquer pessoa passe por isso. No caso deles, egressos de um ambiente social completamente diverso, a tortura mental e emocional seria insuportável, com consequências imprevisíveis e irreparáveis. Não creio que nem os que lhes tenham aversão absoluta desejem essa abominação. A discussão pode prosseguir, mas, no caso, parece possível alegar que, sem um mínimo de privilégio, a justiça não será servida. Deve ser mais um dos famosos paradoxos da realidade nacional, que me dão, no dizer sempre lembrado de Cuiuba, um destroncamento na ideia.
Minha vontade, portanto, era parar de ler, conversar e escrever sobre o mensalão, mas não esperava que outros acontecimentos historicamente marcantes me fossem evidenciados como foram. Quem me abriu os olhos foi o comandante Borges, que apeou sorridente de sua bicicleta elétrica de última geração, brandindo recortes de jornais e revistas. No começo, tive um sobressalto, com medo de que ele fosse defender a guilhotina contra os sentenciados. Mas não era nada disso, como pude logo constatar, quando ele, num gesto de espadachim, abriu sobre a mesa um dos recortes, onde se estampava a foto de uma mulher muito bonita, em nu frontal.
— É esta! — bradou o comandante. — Eu trouxe a entrevista dela! Entrevista sensacional! Está acabando essa loucura das mulheres, ainda há grandes mulheres neste mundo, a Britney Spears aderiu, a Julia Roberts aderiu, eles estão de volta, ele está de volta, o isósceles mágico está de volta!
A moça nua dá uma entrevista enérgica pela liberdade feminina. Nada contra os cuidados de beleza, mas ela, além da pele, dos cabelos, das unhas, das sobrancelhas e de tanta coisa que lhe tomava um tempo enorme, não aguentava mais também ter de atentar à área pubiana, preocupar-se com depilações e raspagens, saber de modas e estilos e dedicar horas a isso — chega dessa tirania insuportável, viva a liberdade! Não é mais moderno fazer depilação pubiana, é submissão a normas alheias à expressão feminina, é alienação!
— Eu escrevi aqui e vou botar no blog de um amigo meu — falou o comandante, passando à leitura exaltada de uns papéis que tirou do bolso. — Várias pensadoras concluíram que as mulheres estavam destruindo irresponsavelmente um símbolo poderoso, que perpassa as eras e representa a força e o fascínio femininos, estandarte da própria identidade femeal: o sinal de que a mulher substituiu a criança, o triângulo isósceles da fêmea eterna, fulcro e refúgio, mistério e aconchego, provocação e recato! Nada dessa indecência, uma parecendo o queixo do Robert Mitchum, outra lembrando Hitler, outra igual às costeletas do imperador, outra em forma de coraçãozinho, não se pode coonestar o deboche para com os signos sagrados da espécie humana! Estamos vivendo um grande momento na História do Brasil: a Restauração! É porque você não tem coragem de escrever isto para os jornais, nem eles de publicar, mas você devia fazer um apelo a nossas compatriotas de todas as idades...
— Engraçado, eu pensei que sua preocupação era com o mensalão.
— Mensalão? O mensalão passa, a mulher fica! O isósceles reluz soberano, no fim da trilha de penugem macia que em curva suave desce do umbigo da mulher admirada. Sem poder desviar o olhar enfeitiçado, o homem...
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