O GLOBO - 01/12
Quem não viu 'Blue Jasmine', pare por aqui, ou pule para os parágrafos finais onde provavelmente estarei tratando de alguma outra coisa que não tem nada a ver com isso
O filme de Woody Allen com Cate Blanchett DuBois é bom, como tantos dizem, mas tem uma dramaturgia meio engraçada. Nem Walcyr Carrasco escreveria a cena do encontro entre a Wall Street Blanche e o ex-marido da exageradamente contrastante irmã, na porta da joalheria em que ela vai comprar, ao lado do novo amante que representaria sua redenção, o anel de noivado. (Escrevo sem o cuidado de ocultar detalhes que revelam o desfecho da trama. É para quem já viu o filme. Quem não viu, pare por aqui, ou pule para os parágrafos finais onde provavelmente estarei tratando de alguma outra coisa que não tem nada a ver com isso.) O ex-cunhado diz logo tudo o que destruiria o futuro casamento. É certo que ele tinha razões para querer vingança, mas a coincidência (assim como a da irmã que, em Nova York por poucos dias, vê o marido de Blanche Blue Jasmine levar uma amante até a esquina e beijá-la na boca) surge forçada como nas mais descaradas novelas. Sou um antigo detrator do estilo de Allen. Quando ele era adorado, eu implicava com o que me parecia careta demais em sua visão de mundo. “Mahattan” não tem nem um preto; os punks de “Hanna e suas irmãs” são retratados como aberrações uniformemente fabricadas; há a piada sobre Dylan em “Annie Hall”; Zelig espelha todo tipo de gente, nunca mulheres ou bichas; maconha é anátema; a música popular morreu desde os Beatles, tal como para Paulo Francis ou Ruy Castro; Barcelona e as coisas da Espanha são como “Bananas”. Eu era contracultura tropicalista. Tenho muita saudade de Teresa Aragão — e sofro em dobro por não poder dizer-lhe que hoje amo os filmes de Allen.
Na verdade, mesmo à época eu tinha consciência de alimentar uma implicância. Afinal, eu próprio gosto da música do período pré-Beatles com o mesmo entusiasmo que o diretor; detesto maconha ou qualquer droga que mude minha percepção; considero Nova York cidade minha, o lugar onde eu poderia viver fora do Brasil (se aguentasse os invernos). Comecei a gostar em “Radio days”, que, no entanto, eu caracterizava, com alguma razão, como uma miniatura de “Amarcord”. Justo um filme que os antigos amantes de Allen não curtiram muito: era já o começo do desencanto do público americano com seu gênio. Hoje gosto de quase tudo de Allen na TV. E, ao contrário de muitos amigos meus de Nova York, sou apaixonado por “Meia-noite em Paris”. Adoro “Tiros na Broadway” e já vi “Tudo pode dar certo” umas cinco vezes sem que em nenhuma delas pudesse conter as lágrimas ao ouvir a frase final dita por Larry David (ele diz, olhando para o espectador — isto é: para a câmera —, ser o único que vê a imagem inteira, na verdade “todo o filme”, já que “picture” também significa filme, sendo ali claramente frisada essa acepção da expressão inglesa corrente “see the whole picture”). E revejo com prazer qualquer uma das comédias que fazia questão de desprezar décadas atrás.
Os dramas são mais difíceis de engolir. Allen ele próprio diz que seu melhor trabalho é “Match point”. Que me parece uma refilmagem de “Crimes and misdemeanors”, um cinedrama de ideias, ou de tese, em que, como disse Pauline Kael, ele quer “nos ensinar não apenas o que já sabemos mas também o que já rejeitamos”. E com todas aquelas alusões a “Crime e castigo”. “Interiores” parece um congresso de antílopes, com todos sempre de bege. Mas, vamos lá, não são ruins de todo. E neste agora Cate Blanchet é tão bonita e tão naturalmente inteligente que quase tudo ganha profundidade. Mas eu fui um espectador incômodo, rindo em momentos sem intenção de comédia. É que o esquematismo é uma licença do cômico: no drama, pode bater forte demais em nossa credulidade. De todo modo, não atribuo exclusivamente a Cate os méritos citados: o diretor ama as mulheres e sabe filmá-las de modo a revelar-lhes os mais intensos encantos. Sérgio Mallandro, que também ama as mulheres, reconheceu o esquematismo do filme, mas o redimiu à sua maneira dizendo que ele traz a mensagem “O caguete tem que se foder”. “Ela”, Jasmine, “estava toda feliz naquela vida de rica. Foi dedurar o marido, terminou falando sozinha no banco da praça”.
O GLOBO botou que o ministro Gilmar Mendes contou casos judiciais de biografias vs privacidade na Alemanha, mas não transcreveu nenhum. Qualquer complexificação do tema causa alergia em jornalistas e editores. Tudo tem de ser mais forçado que as viradas de Allen. Bem, ele é o mais oscarizado dos roteiristas. A biografia de Hal e a história das biografias no Brasil são tratadas com mão pesada. Sou um ser estranho. Gosto da imprensa livre do Brasil e dos filmes de Allen. Mesmo não podendo conter o riso diante do que é inconvincente.
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