O GLOBO - 03/11
Talvez a tarde amena e clara, que se firmou depois de uns chuvisquinhos matinais, tenha contribuído para a placidez quase silenciosa, então reinante entre os frequentadores do boteco. Nenhuma novidade. O pessoal do cânter, já disposto nas mesas mais próximas da calçada, apreciava, com animação discreta, a passagem de moças e senhoras indo e vindo da praia, “potrancas esplendorosas, cujo baloiçar de ancas sublimes transporta o homem aos píncaros do delírio erótico, ai se eu pudesse dar uma alisadinha em cada uma”, no dizer arrebatado do doutor Amoroso, que não por acaso ostenta este cognome. Em mesas bem próximas, Dick Primavera, diante de um notebook e três celulares, harmonizava, com a desenvoltura costumeira, seus múltiplos afazeres comerciais com o atendimento à extensa rede de admiradoras, sempre em busca de alguns minutos de seu tempo; Coração de Leão descrevia em minúcias seus mais recentes achaques, que incluem quase todas as doenças do catálogo médico que ele sempre consulta; doutor Leo Bom Gogó anunciava que vai puxar dois sambas e uma marchinha no próximo carnaval e ainda dispunha de um dia livre na agenda.
Tudo, portanto, na mesma de sempre, com a importante exceção da ausência, já pelo terceiro domingo consecutivo, do sempre aguerrido comandante Borges. Andaria, talvez, às voltas com o aperfeiçoamento do notório Plano Borges? Envolvera-se em algum duelo, dos muitos para os quais desafiara os insolentes? Ainda se dedicava a estudar os prós e contras da forca e da guilhotina, como métodos de combate à corrupção na vida pública?
— Nada disso — disse ele, com um risinho maroto, depois de cumprimentar todos individualmente e beijar com elegância as mãos das senhoras. — Eu tirei um tempo para namorar, tinha até esquecido como é, perdi ritmo de jogo. E eu sou velho, mas ainda tenho mercado, não envergonho.
— Mas que grande notícia! Vai trazer a namorada aqui, para apresentar?
— Não, não vou, já desisti, a degenerescência é total.
— A degenerescência? As mulheres...
— Não quero entrar em detalhes, os detalhes são inúmeros e de ordem muito diversa. Por exemplo, eu tenho posição firmada e fundamentada, quanto a essa questão dos pelos pubianos. Parece besteira, mas não é, é muito importante para a simbologia do amor, eu acho isso que está acontecendo uma irresponsabilidade muito séria, estão mexendo com a sobrevivência da espécie.
— Mas não há um certo exagero nisso? Quer dizer...
— Não pode raspar tudo e fazer plástica! Descaracteriza toda a área, como se fosse a casa da mãe Joana, aquilo ali não é qualquer lugar, pense bem, é patrimônio da Humanidade! É muito pior que construção sem licença ambiental, muitíssimo pior! Abala todo o inconsciente humano! Não pode! Não pode, é um crime! Chega! A testa é falsificada, o queixo é falsificado, a boca é falsificada, o pescoço é falsificado, os peitos são falsificados, a bunda é falsificada, as panturrilhas são falsificadas, as coxas são falsificadas e agora a zona básica de operações é falsificada! Não pode! Esse território é importante demais para ficar a cargo das mulheres, elas não entendem nada disso! Ainda mais essas mulheres irresponsáveis e inconsequentes, cujo primeiro gesto é patolar o indivíduo e cujo primeiro papo é sobre as preferências dela na cama! Todo mundo já viu todas as mulheres nuas, mostrando até as amídalas, não está certo! Não se pode aceitar uma coisa destas sem revolta! É caso de revolta popular! Revolta! Sedição! Fuzilamento! Às galés! Não pode, eu, eu...
— Calma, comandante, tome fôlego, olhe a apoplexia outra vez.
— Vocês me provocam. Não falo mais no assunto, sou um cavalheiro.
— É verdade. Acho que esta é a primeira vez em que você entrou aqui sem abordar os grandes problemas brasileiros.
— Ah, isso é passado. Esse negócio de falar no Brasil, me aborrecer à toa, não, isso é passado. Outro dia eu pensei e vi que não tem mais Brasil, a gente acha que tem porque se viciou, mas não tem mais. Veja esse rapaz sergipano que agora recusou a seleção brasileira e vai jogar pela Espanha. Você já pensou isso em 1960? Ele só não seria linchado porque todo mundo ia concluir que era um louco. Agora não, agora não tem mais país mesmo, não tem seleção como antes, todo mundo joga igual, não tem nem país do futebol, é tudo repetição besta, futebol aqui dá prejuízo, lá fora dá muito lucro e futebol é grana e grana não tem nacionalidade. Não tem essa besteira de Brasil-Brasil-Brasil, isso é coisa para os iludidos de minha marca, que agora estão abrindo os olhos. Agora tem o Brasil das mulheres e o Brasil dos homens até nos discursos das autoridades, o Brasil dos negros, o Brasil dos brancos e o Brasil dos pardos, o Brasil dos héteros e o Brasil dos gays, o Brasil dos evangélicos e o Brasil dos católicos, Brasil com bolsa família e Brasil sem bolsa família e nem sei mais quantas categorias, tudo dividido direitinho e entremeado de animosidades, todo mundo agora dispõe de várias categorias para odiar! A depender do caso, o sujeito está mais para uma delas do que para essa conversa de Brasil, esquece esse negócio de Brasil, não tem mais nada disso!
— Também não é assim, comandante. Lembre-se das manifestações.
— Por que é que eu vou me lembrar, se ninguém mais se lembra? Ninguém me pega com isso, já estou em outra. Agora estou escolhendo em qual dos Brasis vou ficar, não posso mais perder tempo.
— Já tem algum em vista?
— Já. O dos ladrões. Tem muita concorrência, mas é o que oferece mais futuro e segurança. Você entende alguma coisa de formação de quadrilha?
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