O Estado de S.Paulo - 03/11
Há quem diga que a luta para sobreviver num país onde falta tudo estaria qualificando os cubanos para o salve-se quem puder do capitalismo. Será? Aqui vão, em todo caso, três vinhetas que este cronista trouxe de lá em outros tempos.
Joint venture
Atrasado para a entrevista, eu tentava pescar um táxi na caudalosa rua 23, no bairro de El Vedado, em Havana, empreitada nada fácil às 5 da tarde, horário em que a máquina do Estado derrama nas ruas grossos cardumes de servidores públicos. Já farto de bracejar qual flanelinha, consegui por fim o que buscava. Não um Fiat Uno da Turistaxi, então exclusivo para estrangeiros e cobrando em dólares: coube-me uma bañadera (banheira), um daqueles carrões americanos remanescentes da era capitalista que parecem estar lá para posar para os turistas.
Ao volante, o velhinho espigado com cara de trompetista do Buena Vista era um típico integrante da Anchar, a Asociación Nacional de los Choferes de Alquiler - dos poucos ramos da iniciativa privada que a revolução socialista não podou e no qual se empoleiravam senhorzinhos e suas não menos calejadas bañaderas, que, sem taxímetro, funcionavam como lotações.
Acertado o preço da corrida, dividi o banco traseiro com duas mocinhas de short, e o tremelicante Oldsmobile se pôs em marcha, num ritmo vagaroso mesmo para os padrões cubanos. Não tardei a me dar conta de que a lata velha, além de se arrastar, tomara rumo bem diverso do que eu solicitara. Talvez fosse levar primeiro as moças, pensei. Mas não, o trompetista notoriamente rodava a esmo - até que eu, num iracundo portuñol, o interpelasse, o que o fez, de cara amarrada, acelerar sem mais tardança para o endereço indicado.
Dois dias mais tarde, o que surpreendo no mesmo ponto de El Vedado? A mesma bañadera, o mesmo bigodinho e, você adivinhou, as mesmíssimas mocinhas oferecendo as coxas.
Café de segunda borra
Eu sabia do porco criado em apartamento, da maionese praticamente sem ovo, do bife de casca de banana da terra, das bicicletas que ganham capota e viram "bicitáxis", dos carros Lada que, espichados, se transformam em "ladalimusinas" e do vinho doméstico de coco, abacaxi, beterraba e até uva - sabia de tudo isso, até escrevi a respeito, mas não do que se poderia chamar de café de segunda borra. Conta-me um amigo que a avó dele, coado o café, põe a borra para secar - e a revende, pois descobriu que neste mundo há comprador até para aquele pó desbotado.
Stairways to heaven
Quando conheci Heitor, ele acabara de instalar-se num sobrado térreo de enorme pé-direito no Centro de Havana. Sua ideia fixa, a partir de então, foi acrescentar ao pardieiro um mezanino - uma barbacoa, se diz em Cuba.
Na minha viagem seguinte, já era realidade - com um problema: como chegar lá em cima, se não havia escada? Engarranchado, como tantos cubanos da velha geração, na estética da década de 50, a última antes do socialismo, o Heitor fizera questão daqueles degraus espetados na parede, sonho que o construtor, cioso da avançada idade do sobrado, não se arriscou a realizar. Restou a meu amigo providenciar os degraus e espetá-los ele mesmo. Um a um, e a largos intervalos: na impossibilidade de adquirir logo toda a madeira, o Heitor, com seu curto soldo de dentista, não teve saída senão ir comprando degrau por degrau. Comprar, seja dito, não é bem o verbo. Nas engrenagens do regime de escambo que faz rodar a vida dos cubanos, ele passou a cambiar por toras o material odontológico que subtraía à clínica onde trabalhava.
Já não me lembro quantos degraus eram necessários, mas em sucessivas viagens pude acompanhar o lento avanço das obras, tornadas ainda mais vagarosas depois que a aposentadoria compulsória cortou o acesso de meu amigo aos estoques estatais de pasta de dente, escova e fio dental. Faz um tempo que não vou a Havana nem falo com o Heitor, e me pergunto se ele já conseguiu descolar os cinco degraus que, na minha última visita, ainda o separavam do momento em que triunfalmente subiria ao céu, quer dizer, à barbacoa.
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