GAZETA DO POVO - PR - 03/11
Grandes eventos de rua despertam novos participantes para o mundo da arte, mas cabe ao poder público e às demais instituições garantir uma rotina de acesso às linguagens criativas
A “corrente” ou “virada” cultural (o nome muda dependendo do organizador) se tornou o grande fato artístico do ano. Chega à terceira edição. É pouco tempo. Mas já o bastante para gerar expectativa e alterar sobremaneira a rotina da capital paranaense e de mais 11 cidades do interior, palmo a palmo integradas à programação.
Correntes ou viradas, contudo, ainda estão na primeira dentição. Daí alguns tropeços. Deve-se pensá-las, sem promover o desmancha-prazeres. A proposta nasceu de modelos desenvolvidos em outros países, em especial os europeus, nos quais tais eventos são comuns. Em São Paulo, de modo particular, ganhou uma segunda intenção: a de servir de elixir contra a violência. Onde há ruínas, abandono, medo, coloca-se no lugar música, teatro, gastronomia, gente circulante. Em Santos, no litoral paulista, a mesma lógica é aplicada, mas levando jovens, todos os fins de semana, para shows de música ao vivo nas áreas degradadas.
Em Curitiba, adotou-se esse discurso, mas só até o engate da primeira marcha. O occupy da Rua Riachuelo, madrugada adentro, por exemplo, tinha esse propósito, mas muito rápido as noitadas musicais e dançantes se aparentaram mais do lazer e da urbanidade que das urgências em promover a segurança pública. Ir à Corrente é viver a cidade à noite.
A mudança da letra não tira o encanto da música. Nada há de mal em fazer da urbe um espaço de happening e performance – bem a gosto do que nos ensinaram os arautos da contracultura nos anos 1960. A desejar, apenas, a impressão de que todas as trombetas antiviolência padecem do mesmo mal: sucumbem diante da pressa em resultados, como se pudessem ter poderes mágicos. É provável que as edições da Corrente ou da Virada não tenham inibido a criminalidade. A questão é que, em não havendo dados a exibir, resta o silêncio e a mudança nos discursos. Ora, estar na rua de madrugada, pisando em territórios do medo, não tem efeito mensurável pela estatística, mas isso não significa que não se trate de uma ação que redunde numa nova cultura de uso da cidade. O esconjuro à criminalidade vem por acréscimo.
É uma pena que as correntes e viradas tenham deixado nas entrelinhas aquilo a que vieram, “amarelando” o caráter político e pacifista que representa sair à rua para ver um show. Não é de estranhar que o temor, no fundo, seja o de associar arte e segurança pública. No imaginário brasileiro, a cultura ainda goza de caráter recreativo e ilustrado. Mas mal não faz ao mundo criativo assumir sua parcela na construção de uma sociedade da paz.
Há nesse debate uma outra nuance – como bem alertam intelectuais como Teixeira Coelho, com folga um dos mais fecundos pensadores brasileiros sobre as relações entre arte e cidade. A cultura muda de lugar – num deslocamento constante, nem sempre para melhor. É o caso de sua associação a evento, a lazer, a espetáculo. E sua transformação em elemento sexy da vida das cidades. Ora, nada mais está na lógica do cotidiano do que a cultura, o que o próprio nome diz. Sua mercantilização sem limites só reforça a aura de exceção, colocando-a num plano extraordinário, passível de ser experimentado em ocasiões. É nesse ponto que reside uma das fragilidades dos arrastões culturais.
São, sem dúvida, momentos de confraternização – de consumo coletivo, o que nos falta nesses tempos de solidão virtual. São, igualmente, momentos de iniciação. Nessas ocasiões, não poucos apartados das linguagens artísticas tomam contato com o que lhes é desconhecido, passando a formar seu repertório cultural. Depois do “arromba”, precisam ser alimentados. O poder público e as instituições em geral ainda pecam na hora de criar uma rotina para as artes, mantendo pequenas salas de repertório, nas quais o gosto pela música, pela pintura e pela dança são cultivados. Alguns dirão que esses espaços estão aí, para quem os queira. Outros hão de lembrar a diminuição de atividades nos pequenos espaços, cada vez mais voltados para a macro do que para a microcultura. A busca pela cultura midiática, pela sociedade do espetáculo, não é uma miragem. É realidade.
Deve-se estar vacinado contra ela, de modo a não incorrer no pior dos discursos culturais – o que limita a cultura à inclusão, ao bem que pode transmitir, tirando dela todo o caráter provocativo. A arte não existe para servir. Não está aí para formar o bom cidadão. Para reforçar o “jeitão” brasileiro. Ou para nos tornar mais alegres. Pensar assim, como diz Teixeira Coelho, é domesticar a cultura, tirando o que lhe é próprio – o poder de inquietar. Que seja um bom termômetro para os dias que se seguem.
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