O GLOBO - 03/11
Anovidade tem tudo para dar errado. Ser uma arapuca para investidores ofuscados por nomes de famosos e implodir como quintessência de aventura de marketing financeiro. Ainda assim, seu lançamento no início deste mês pode ser considerado uma marca na história do capitalismo moderno.
Devidamente credenciada pela Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês), a recém-criada Fantex Holding de São Francisco, financiada por investidores de Wall Street e por grandes operadores do mundo dos esportes, lançou a primeira IPO de um bípede. Trata-se do astro do futebol americano Arian Foster, um dos mais populares e eletrizantes running backs da National Football League (NFL), a poderosa dona do esporte. De ascendência mexicana, americana e negra, Foster é um showman nato, além de ter tido desempenho eletrizante em duas das três ultimas temporadas. Tem contrato de cinco anos assinado com o Houston Texans, no valor de US$ 43,5 milhões.
A ideia da Fantex é vender US$ 10,5 milhões em ações do atleta. Atingida a meta, Foster recebe de uma só vez um adiantamento de US$ 10 milhões e a partir daí ele se compromete a pagar à corretora, até o fim da vida, 20% sobre todos os seus rendimentos — contratos com clubes, patrocínios, campanhas com publicidade, cachês, direitos autorais, participação em filmes, seja o que for que venha a ter.
Os 1.055.000 de ações colocadas à venda estão abertos a qualquer investidor de mais de 18 anos que resida nos Estados Unidos, com lance mínimo de dez dólares. Mas ninguém poderá adquirir mais de 1% do total. E quem quiser renegociar suas ações no futuro deverá pagar 1% de comissão à Fantex. “Estamos unindo esporte e negócio de uma forma até então impensável”, celebrou Buck French, o cofundador e CEO da empresa. “Construímos uma plataforma poderosa para alavancar a marca de atletas. E, no futuro, de celebridades em geral”, diz o ex-aluno da Harvard Business School.
Com seus 85 milhões de autoproclamados fãs “fanáticos” e uma audiência televisiva sem paralelo no esporte mundial, o futebol americano serviu de celeiro ideal onde pinçar um ídolo e formatá-lo em commodity. Não apenas para investidores em busca de ações passíveis de se valorizarem, como para torcedores e fãs apaixonados — à falta de um autógrafo, que tal poder dizer que tem ações de Neymar, Usain Bolt ou (que Felipão não nos ouça) do atacante Diego Costa?
De acordo com o registro da Fantex na SEC, a cada atleta ou celebridade transformado em mercado de ações será alocado um gerente de marca encarregado de aumentar o valor do “produto”. Na avaliação do valor desse bípede entram variáveis bastante elásticas — além de contratos já assinados e desempenho atlético, entram variáveis como idade, número de seguidores no Twitter, ambição, carisma, drive pessoal.
Muitos lutadores de boxe emergentes, jogadores de futebol, tenistas e cavalos já tiveram donos, sócios ou investidores privados no passado. De vários tipos e caracteres. O caso mais célebre é o do boxeador americano Sugar Ray Leonard, que, depois de conquistar o ouro nos Jogos Olímpicos de Montreal, em 1976, precisou tornar-se atleta profissional para sustentar a família. Orientado por um advogado, fundou a empresa Sugar Ray Leonard Inc, da qual era único acionista, e teve por investidores 24 amigos que lhe emprestaram US$ 21 mil por quatro anos, a juros de 8%. Já na primeira luta como profissional, porém, ressarciu todos. Acabou tornando-se o primeiro lutador profissional a embolsar mais de US$ 100 mil em luvas.
Também já houve apostas ligadas a celebridades fora da arena esportiva. Nos anos 1990 um financista chegou a criar um modesto negócio de ações com o valor futuro de 25 discos do roqueiro David Bowie — os chamados “Bowie Bonds”. Só que a cotação do valor dessas músicas não dependia da disposição, da popularidade ou do estado de saúde futuros do cantor. Não dependia sequer de ele estar vivo ou morto.
No caso da IPO humana de agora, a corretora precisa turbinar ao máximo não apenas a carreira do atleta como o leque de atividades posteriores a ela. Só que a segunda parte desta equação depende, perigosamente, da primeira.
E os riscos da primeira são, per se, colossais. Tome-se o caso do próprio ídolo do Houston Texans. Três dias depois do anúncio da IPO, Arian Foster teve um de seus piores desempenhos em cinco anos de NFL. Pegou na bola só quatro vezes antes de sair de campo na primeira metade do jogo, com um estiramento da panturrilha. Desde o início da temporada seu desempenho já não vinha sendo cintilante e a ele vieram se juntar rumores não confirmados de alguma anomalia cardíaca.
Na NFL, bem mais do que em outros esportes, lesões são consideradas parte do jogo — tanto assim que numa única temporada a média de concussões cerebrais sofridas por cada jogador, dependendo da posição que ocupa em campo, oscila entre 420 e 2.492. Outra peculiaridade da NFL em relação a outros esportes é que contratos não são garantidos, maus desempenhos repetidos condenam o atleta ao banco de reservas e não raro dali para procurar emprego em outro time.
Cabe perguntar se a perspectiva de receber um adiantamento vultoso que lhe sirva de garantia para a vida não levará um atleta a melhorar artificialmente seu desempenho, recorrendo ao doping, ou a suportar danos físicos irreparáveis para poderem ser alvo de uma IPO salvadora.
Para o investidor, o alerta de que se trata de uma aposta de alto grau especulativo consta do próprio material de divulgação da operadora: “Investir nas ações da Fantex só deve ser cogitado por quem pode arriscar a perda total do seu investimento”, diz o texto de lançamento do novo empreendimento.
Pouco importa, a semente está lançada. Surpreende apenas que a primeira IPO humana não tenha sido de Eike Batista.
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