O GLOBO - 09/11
O que esses jovens estão fazendo pela afirmação da ‘cultura periférica’ é admirável. Como os companheiros de outras partes, estão unindo a cidade partida
Aprofessora Heloísa Buarque foi quem detectou o fenômeno, que pode ser chamado de “invasão cultural do centro pela periferia”. Isso acontecia de outras maneiras, como, por exemplo, com os serviços: porteiros de edifícios, empregadas domésticas, garçons de restaurantes, motoristas, babás de nossos filhos são em geral oriundos da parte de cima ou de fora da cidade.
Os morros sempre foram produtores de arte, e uma das maiores festas populares do mundo, o carnaval, é organizada e realizada por seus moradores. Nos anos 50 e 60, artistas e intelectuais procuraram “dar vez ao morro”, como Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Carlos Lira, o pessoal do Centro Popular de Cultura, da UNE, e do Teatro Opinião. A novidade agora é que a periferia não quer mais que se fale por ela, não quer ser tema, quer ser a própria voz. E já é, graças ao trabalho de agentes socioculturais como José Junior, do AfroReggae; Guti Fraga, do Nós do Morro; Celso Athayde, da Central Única das Favelas; MVBill, do documentário “Falcão, meninos do tráfico”; Jaílson de Souza, do Observatório de Favelas da Maré; Ecio Salles, autor do livro “Poesia revoltada”, entre outros.
Inspirada na Flip (Festa Literária de Paraty), a periferia resolveu também fazer as suas, e assim, no ano passado, surgiu a Flupp, Festa Literária das UPPs, agora Festa Internacional das Periferias, e a Flidam, Festa Literária da Diáspora Africana de São João de Meriti. Esta semana, participei da Flizo, Festa Literária da Zona Oeste, que se desenrolou em vários pontos da região durante quatro dias. Com dois intelectuais locais, Binho Cultura e Alexandre Damascena, participei da mesa de debates “Invertendo a lógica da cidade partida”, em Bangu. A “viagem” mostra como a nossa imobilidade urbana castiga mais quem já mora longe. O trajeto é para ser feito em uma hora e pouco, mas pode-se levar, como levei, duas horas e 15 minutos, o equivalente a um voo de ida e volta a SP.
Era um fim de tarde ao mesmo tempo triste e de celebração. Dias antes, um tiroteio no Fórum do bairro matara, além de um PM, o menino Kayo, de 8 anos, que saía do treino na escolinha de futebol do Bangu vestindo o uniforme esportivo do clube em cuja sede acontecia o nosso encontro. Em cada fala, cada olhar, notava-se o luto pela perda, mas também as queixas contra a violência urbana e a ausência de segurança. Aquela tragédia, por exemplo, poderia ter sido evitada. “Onde estavam os órgãos de inteligência e os de repressão?”, estranhou depois a própria presidente do TJ.
Por outro lado, era um momento de celebração da arte. Ao longo de quatro dias, o evento promoveu leituras dramatizadas, exibição de filmes, apresentação musical, espetáculo teatral e uma homenagem a José Mauro Vasconcelos, filho dali e um dos maiores best-sellers que o país já teve. A Flizo já é um sucesso. O que esses jovens estão fazendo pela afirmação da “cultura periférica” é admirável. Como os companheiros de outras partes, estão unindo a cidade partida.
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