sábado, novembro 09, 2013

Droga - ARNALDO BLOCH

O GLOBO - 09/11

Madamas de Zona Sul acham “tudo” aquilo que é nada, e adoooooooram qualquer coisa que o outro diga, desde que não se aporrinhem com o ato de pensar


Que droga. O quê? Quase tudo o que se consome. Bens que são maus. Substâncias sem substância. Palavras vazias. Pensamentos vãos. Fica aí a sociedade bradando contra os flagelos da maconha, do pó, do crack, enquanto o álcool é abençoado como o fruto bíblico da vinha transcendental, combustível das festas da vida, ao passo que jovens e velhos se entocam para gozar jogos de morte no videogame e reger orquestras no controle remoto do Wii como loucos ciclotímicos que nunca ouviram música decente.

Entopem-se de pizzas saturadas de gordura velha e gritam de alegria. Tomam 30 xícaras plásticas de café e xingam o semelhante com surtos de ansiedade. Compram imóveis do tamanho do céu e ostentam a morada para borra-botas, o dinheiro jorrando da bunda como se fosse néctar. Comem hambúrgueres com picles de jiló como se fossem bolsas Prada e cobram tubos por falsificações de sofisticação. Drogas.

Tomam Rivotril, e o Rivotril vira capa de revista como salvação da honra e do glamour no mundo da ilibada competição enquanto comem o fígado alheio e escarram pétalas de ouro folheado. Consomem informação de última linha e engolem a rodo textos indigentes de analfabetos funcionais profissionalizados como senhores da informação.

Que droga. Desdenham do transporte público, que é uma droga em si, e estofam-se em carros entupidos de impostos para se sentirem donos de seu espaço individual, e mandam a mãe do sujeito emparelhado no sinal catar as conchinhas do inferno, abrigados na prepotência que nasce da impotência.

Madamas de Zona Sul acham “tudo” aquilo que é nada, e adoooooooram qualquer coisa que o outro diga, desde que não se aporrinhem com o ato de pensar. Resumem suas vidas e sua personalidade a meia dúzia de determinismos astrológicos, lançando ao lixo quaisquer outras considerações sobre a natureza humana que não se relacionem com sua ilusãozinha de massa sobre a influência de planetas caducos e constelações ultrapassadas, enquanto a ciência vira sinônimo de superstição.

Que droga. A Coca Zero borbulhando a estupidez de cada dia. A polêmica da vez derivando em fla-flus imbecilizados que nada aprofundam e mantêm a reflexão na superfície da espuma estúpida da alienação. Uma polêmica por semana. Polêmica. Polêmica. A última. A atual. A próxima. A última droga da rede. A penúltima frase idiota rsrsrs kkkkk smile smile smile.

A História. Que História? O presente. Carpe diem é uma droga. Viver o quê? O dia mal nasce e já morre de velho e igual a ontem e amanhã. Futuro? Uma droga. Droga de mundo pros filhos e pros netos, então pra que melhorar? Salvar a própria droga para maiores coeficientes de gozo mínimo até o fim do dia.

Contexto? Uma droga. Texto? Uma droga. Ler só o título. O sub no máximo. Ver a foto. Uma foto vale por zero palavra. Pra que palavra? Sensação. 3D. 4D. 5D. O diabo a quatro. Deus em qualquer dimensão delirante. Tarô cabala cabou a consulta, manda a grana. Real. Droga. Vale quanto? Juro que os juros vão cair, subir, sumir, desde que a opção acomode minhas commodities na mesa de roleta mundial.

Mundo? Droga. Parem, não parem, quem gira e quem para é o ser que nunca foi nem será. O que será que será? A vida dos outros? A privacidade alada dos anjos da arte? A privacidade da presidente que privatiza a vida privada do povo?

Povo? Droga. Quem pensa nele? Povo é massa, meu. Droga de manobra. Vai à rua, vai pra casa, cala a boca e vê TV. Viva o Pré-Sal. Droga. Pó velho de fantasma de fóssil que entope o ar de fumaça preta de morte. O Maraca é nosso. Droga. Padrão Fifa, tudo igual, tudo será como ainda nem foi. Seleção. Droga. Felipão cinismo na veia. Olimpíadas piadas de salão oval Obama na tumba.

Chocolate. Droga. TPM para todos. Homens de TPM. Mulheres de pau duro. Homens de quatro desculpando-se do falocentrismo milenar.

Água de coco. Droga. Cocô no bueiro do Leblon. Simulacro de coco em barezinhos palácios palafitas retrofitadas, choque de desordem intelectual, estupro material e mental na ordem do dia da rede.

Eventos. Droga. Cinco eventos por semana. Moda moda rock dinossauro feira casa marketing workshop quantum dos espíritos. E o tempo pra respirar? Respirar sem evento. O evento é a vida, o sol, o mar, o amor. Cadê a vida? Cadê o amor? Cadê o ar? Droga de ar morto. Fedor no mármore. Empáfia no STF. Alianças. Droga. Balcão de negócios. Ideolofagia. Fagoesquerdodireitocentrismo. Patofisiologia. Saudades da patafísica. Metalinguagem involuntária no traseiro das nações. Imperativo cagatórico.

Onde fica a Conchinchina? Qual o mapa de Pindamonhangaba? Quantas infâmias cúbicas para se voar do Oiapoque ao Chuí? A casa da mãe Joana está no Google Maps? A casa do catso tem GPS? Um chalezinho chulé de mil dólares resolve o furor uterino das consciências? Um álbum de modelos no hotel 5 estrelas aplaca um crime de ódio?

Sistemas de cota para o inferno. Esvaziar o mundo. Ação afirmativa rumo ao paraíso. Seleção natural do animal moral vai ter candidato? Que vença o mais forte. Império da droga: homo sapiens no poder do universo utópico. A gente vai levando. A gente vai lavando a droga civilizacional. Reciclando o lixo final.

Droga.

Um comentário:

Antonio disse...

À medida que lia, as lágrimas escorriam sem pedir licença já na primeira coluna do texto. Arnaldo Bloch conseguiu expor um pouco do mundo rico de desnecessidades e vidas fúteis; a nossa droga diária. Talvez tenha sido nocauteado por suas palavras porque viajei a Cuba por 3 semanas agora há pouco. Lá, encontrei um mundo sui generis e ainda estou processando as informações de tudo que vi, ouvi e compartilhei. Acrescento que me sinto desconfortável com a maneira de como as pessoas estão ferrando suas próprias vidas (eu, inclusive, apesar da vigília constante). É um grande esforço ouvir o som do próprio coração (para ter a certeza que estou vivo mesmo) e ter que suar, mas de prazer, como diria o grande Gonzaguinha.
Dou graças por ter alguém no mundo que ainda escreva coisas desconcertantes e necessárias.
Antonio Gonçalves