O GLOBO - 12/10
O que é ser artista? É sentir como conteúdo aquilo que os não artistas chamam “forma”. Assim falou Nietzsche. Não acredito que haja algum artista extraviado por esta coluna. Mas, se houver, haverá de concordar que essa é uma das observações mais perfeitas sobre o que significa ser artista. Nietzsche deixou também uma das mais belas declarações de amor à música (que pode ser estendida às artes em geral): “Sem a música, a vida seria um erro, um exílio, um cansaço.”
Para muitos de nós, inclusive não artistas, a arte é realmente uma necessidade vital. E representa no fundo, como disse Fernando Pessoa, uma confissão de que a vida não basta. Mais do que isso: a arte pode ser uma verdadeira comoção na vida. Ela tem o poder de transtornar tudo e conferir aura, cadência, colorido, sentido.
Desde os vinte e poucos anos, tenho um interesse apaixonado por Wagner, Brahms e Richard Strauss, por exemplo. Ainda hoje, toda vez que chega a mim inesperadamente um acorde, um trecho dessas operas ou sinfonias — vamos dizer, o “Prelúdio de Lohengrin”, “o ápice do romantismo”, segundo Thomas Mann — estremeço como se tivesse vinte anos outra vez. Quando ainda morava em São Paulo, revi “Lohengrin” no Teatro Municipal. Pois bem, rever naquela ocasião o primeiro ato de “Lohengrin” me trouxe uma emoção — na verdade, comoção — que poucas vezes senti na vida real.
Nem sei por que estou dizendo tudo isso. Estou aqui no meio das reuniões anuais do FMI. Os Brics se reuniram três vezes nos últimos dias e fizeram grande progresso na construção do Novo Banco de Desenvolvimento e do Acordo Contingente de Reservas. Está tudo bem. Mas tive não sei que necessidade de deixar esses assuntos de lado um pouco e pensar em algo completamente diferente. E, entre uma tarefa e outra, entre uma reunião e outra, paro um pouco, escrevo um parágrafo, depois outro, e assim vai. Nem sei se está saindo algo apresentável.
Em todo caso, retomo. As palavras, por exemplo, são uma segunda música. Já que falei em Fernando Pessoa, vamos ficar com ele. “Manhã dos outros!” é um poema que recomendo ao leitor. Começa assim: “Ó sol que dás confiança/Só a quem já confia!/É só à dormente e não à morta esperança/Que acorda o teu dia.”
E continua assim: “A quem sonha de dia e sonha de noite sabendo/Todo sonho vão/Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo/E a ter coração/A esses raias sem o dia que trazes ou somente/Como alguém que vem/ Pela rua, invisível ao nosso olhar consciente/Por não ser-nos ninguém.”
Fernando Pessoa, para meu gosto, é um dos gênios da literatura mundial. Poesia, por definição, é o que não pode ser traduzido. Vale a pena aprender português só para ler Pessoa no original. Privilégio nosso.
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