O ESTADO DE S. PAULO - 05/09
Os desvios éticos do Estado têm gravidade análoga à corrupção dos agentes públicos. Mas são menos perceptíveis, porque, usualmente, se fundamentam em lei, o que lhes confere falso brilho. O legislador romano já alertara que a legalidade não presume a moralidade. Esses desvios, ofensivos ao princípio constitucional da moralidade, se revelam por meio da assimetria de tratamento nas relações do Estado com o cidadão, na falta de clareza da lei e de transparência na gestão governamental, na desídia institucional no serviço público, etc. Revisito o tema para apontar mais desvios éticos do Estado brasileiro, mesmo sabendo ser matéria pouco prestigiada, à vista do seu respaldo legal.
Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) obrigou a União a recompor perdas dos beneficiários do FGTS, onerados por expurgos inflacionários dos denominados Planos Verão e Collor.
O montante exigido, à época, para recomposição era estimado em R$ 42 bilhões. Para esse efeito se construiu uma bem articulada combinação de fontes de financiamento, entre elas, nos termos da Lei Complementar n.° 110/2001, uma contribuição social específica a ser paga pelos empregadores nos casos de demissão sem justa causa dos empregados, consistindo numa alíquota de 10% aplicável sobre os correspondentes depósitos do FGTS.
A contribuição foi vinculada àquela finalidade, ainda que a legislação não tenha fixado termo final de vigência. Em fevereiro de 2012, a Caixa Econômica Federal, gestora do FGTS, anunciou que a recomposição se encerrara.
O Congresso Nacional, acertadamente, aprovou Projeto de Lei complementar extinguindo, a partir de 1/6/2013,a contribuição, por perda de objeto. Mas o Poder Executivo decidiu vetar a norma aprovada, alegando que haveria perda de R$ 3 bilhões anuais nos programas sociais e de infraestrutura financiados pelo FGTS e, por conseguinte, ofenderia a Lei de Responsabilidade Fiscal, que demanda compensações para renúncias fiscais.
Trata-se rigorosamente de uma falácia. A aplicação dos recursos oriundos daquela contribuição em programas governamentais, independentemente do seu mérito, representa um flagrante desvio de finalidade.
Matérias veiculadas pela imprensa demonstram que prossegue a lavratura de autos de infração astronômicos contra contribuintes com boa reputação, auditados regularmente, sujeitos a controle de agências governamentais e com ações em bolsa. Ainda que a condição desses contribuintes não possa resultar em privilégios, o fato é intrigante. Não se trata, seguramente, de evasão fiscal. O fundamento dos auto s estaria associado ao nebuloso campo do planejamento tributário.
Em 2002,0 Congresso rejeitou proposta de disciplinamento da matéria. Desde então, perdura uma lacuna legislativa que abriu espaço para arbitrariedades contra contribuintes, com danos à sua imagem e patrimônio. Enquanto inexistir sucumbência nos processos administrativos, em caso de dúvida subsistirá uma esdrúxula presunção de culpa do contribuinte.
De igual forma, como no pagamento de precatórios, consolidou-se a indisposição das administrações fiscais para devolver créditos acumulados dos contribuintes, constituídos por força, sobretudo, de desoneração nas exportações. O Reintegra, regime tributário instituído em 2011, com vigência até 2013, pretendeu devolver às empresas exportadoras os resíduos de cumulatividade gerados na cadeia produtiva. Mas proposta do Congresso prorrogando sua vigência foi vetada pelo Executivo, Sendo razoável admitir que não se tratava de subsídio ilícito às exportações, essa extinção configura confisco.
Contrasta com esses fatos a voracidade na execução fiscal, às vezes cobrada de forma vexatória, o que evidencia excesso de exação, ou com desprezo ao devido processo legal.
A imoralidade do Estado retira sua legitimidade ao exigir do cidadão o cumprimento de obrigações. O Congresso tem uma rara oportunidade de melhorar sua imagem, derrubando os vetos e eliminando os vazios legais.
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