FOLHA DE SP - 20/09
RIO DE JANEIRO - Na quarta-feira, quando o ministro do STF Celso de Mello começou seu longo voto sobre os "embargos infringentes", eu era todo ouvidos. O ministro fala bem. Não deixa uma consoante sem dobrar ou uma vogal ao desamparo, e salpica expressões em latim com grande naturalidade. Mas, vencido por seu legalês profundo, fui deslizando para uma espécie de "rigor mortis", no qual só escutava de longe algumas palavras:
"Dies irae!", parecia dizer Celso de Mello. "Quantus tremor est futurus, quando judex est venturus, cuncta stricte discussurus. Tuba mirum spargens sonum per sepulchra regionum, coget omnes ante thronum. Mors stupebit et natura, cum resurget creatura, judicanti responsura."
Abri um olho e tentei me concentrar no voto do ministro. A maioria dos juízes do Supremo tende a se expressar numa língua própria, impermeável tanto aos clamores quanto à compreensão das grandes massas. Sabendo disso, esforcei-me para não perder uma palavra. Debalde --a fala de Celso de Mello continuava a léguas do meu entendimento. Antes de mergulhar de novo num estado próximo da catalepsia, lembro-me de ter ouvido:
"Líber scriptus proferetur, in quo totum continetur, unde mundus judicetur. Judex ergo cum sedebit, quid latet apparebit, nil inultum remanebit. Quid sum miser tunc dicturus? Quem patronum rogaturus, cum vix justus sit securus? Preces meae non sunt dignae: sed tu bonus fac benigne, ne perenni cremer igne".
Só pode ter sido um delírio auditivo. Afinal, por que Celso de Mello recitaria o "Dies Irae", um famoso hino em latim do século 13 sobre o dia em que, com a chegada de um juiz, os séculos iriam se desfazer em cinzas? Não seria mais fácil dar seu voto em português? Mas foi como me soou. E só então, ao ressuscitar aos 45 do segundo tempo, compreendi que ele aceitara os famosos embargos.
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