O Estado de S.Paulo - 20/09
Uma senhora leva pela mão o que suponho seja seu neto, um garotinho de calças curtas e suspensórios, sapatos e meia três quartos (ao menos assim a chamavam). Por que nossas mães, quando tínhamos 4 ou 5 anos insistiam em nos colocar suspensórios que, para nós, eram coisa de gente velha? Os dois caminham por um terreno marcado pelas rodas de caminhões ou tratores. O garoto tem a cabeça baixa. À frente deles uma estranha construção com o formato de um disco voador, ou como supúnhamos que fossem os discos voadores. Imagino o que os paulistanos pensaram naquele ano de 1954 ao darem de frente com a Oca, um dos edifícios que compunham o conjunto do Ibirapuera para os festejos do Quarto Centenário da cidade. A estranheza que deve ter causado. Estranheza e espanto que Oscar Niemeyer provocou ao longo de toda a sua vida. Esta é a foto da página 4, reproduzida depois na página 79 de um livro que a Imprensa Oficial acabou de editar, A São Paulo de German Lorca. Textos de José de Souza Martins, um dos cronistas que mais gosto de ler neste jornal, conhece a cidade de ponta a ponta, do início até hoje.
Fotos sempre me suscitam perguntas irrespondíveis, porém este é o fascínio da imagem. Quem é este garoto? Por que a avó (seria avó?) o levou ao Ibirapuera? Ele está vivo ainda hoje? Ele já viu essa fotografia e se reconheceu? Em setembro de 1954, vim a São Paulo com a turma do meu colégio e corri ao Ibirapuera, onde se realizava imensa exposição. Deslumbrado, ali deparei com um aparelho de televisão, coisa que só víamos em filmes americanos. Naquele momento, pensei em um sonho. Ser o locutor do serviço de som do parque e poder morar em São Paulo. Perto da Oca ouvia os comentários: "Só um louco poderia imaginar um prédio assim, meio disco voador, meio joaninha". As joaninhas, tão comuns no interior, tinham quase o mesmo formato.
Na página 17, de 1953, uma foto de uma Avenida da Luz deserta, cortada pelo viaduto de Santa Ifigênia. A partir de 1957, eu estaria trabalhando nessa avenida, no jornal Última Hora, um sobradão branco cujos fundos davam para o paredão do Mosteiro de São Bento. Da janela, muitas vezes víamos as pessoas pularem a grade do viaduto, saltando para o nada. Imagens que me ficaram. E aqueles dois homens lendo o Diário Popular? Lembro-me de andar de manhã pelo centro, observando os que compravam o jornal e folheavam ansiosos em busca de emprego. No Diário estava a esperança, a possibilidade de mudança de vida ou o desalento. Em geral, depois de folhear e procurar, os leitores jogavam o jornal, já tinha servido. Esses dois da foto terão conseguido trabalho?
Paro na página 33. Cena da Avenida São João. Frente a frente dois cinemas, o Broadway (com um estilo hollywoodiano) e o Ritz. Havia o Ritz São João e o Ritz Consolação. O Ritz São João transformou-se no Rivoli, de luxo, com poltronas numeradas. Estreou com A Volta Ao Mundo em 80 Dias. O Ritz Consolação tornou-se o Trianon e depois Belas Artes, hoje fechado e à espera de bom senso. O prédio vizinho ao Broadway, nos anos 60, foi um "pombal", eufemismo para prostíbulo, porque as mulheres ficavam todas nas portas e os fregueses subiam e desciam.
Na página 48, um momento de Fellini. Um padre, batina preta, chapéu de clérigo, caminha. Para onde vai? Vem ou vai para a igreja? O que fazia ali? Também fellinianas são as freiras da página 117. Nas páginas 60 e 61, os cavalos de carrossel me trouxeram os parques da infância, me trouxeram meu avô José Maria que, no início do século 20, em Matão, construiu sozinho, esculpindo em madeira, porque era um artista, um carrossel inteiro, viajando por vilas vizinhas. Era chamado O Circo de Cavalinhos do Velho Brandão e está citado na história oficial daquela cidade. Tenho uma dívida com este avô e vou pagá-la com um livro chamado Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos, catarse de uma grande culpa.
Praça da República. Um homem tem a cabeça abaixada. Dorme? Desmaiou de cansaço? Está bêbado. Ao lado, duas crianças. Irmãos? Estão vivos ainda? Se reconheceriam na foto? Sessenta anos se passaram. Casaram, tiveram filhos, netos? A família sabe dessa foto? Na página 67, uma imagem espantosa de 1950. Você vê um pequeno trecho do que seria a Avenida 23 de Maio e ao fundo a Praça das Bandeiras. Reparem no amontoado de casebres, cortiços, pedaços de muros, tranqueiras, morros. Pensar que era pleno centro. Projeto de Prestes Maia (quando teremos de novo um prefeito com tal visão?), lembro-me que quando ela foi inaugurada, final dos anos 60, vieram as críticas: será que a cidade precisa de uma loucura assim?
Eis um livro quase memória. Aqui está o clima da cidade quando cheguei. Cinza, penumbra, estranho, ao mesmo tempo cordial. Milhares como eu vão reencontrar uma cidade que existiu e se transformou. Outros vão mergulhar num passado recente em que ainda havia ruas desertas, homens de chapéu, bondes, lirismo. Falo como se vocês estivessem vendo o livro. Mas podem ir à exposição, que se abre hoje às 18 h 30 na Biblioteca Mário de Andrade. Quem estiver diante das fotos das páginas 72 e 73, que mostram a Avenida Ipiranga, vai atentar para um detalhe estético. A beleza do poste que sustenta os semáforos. Uma foto da Rua Quintino Bocaiuva é nostálgica, com duas placas de tradições que se foram: as lojas Garbo e os chapéus Prada.
Cinco fotos do Aeroporto de Congonhas. Ah, meus tempos de repórter, quando corríamos para lá para entrevistar personalidades. Aldous Huxley desceu, ficou numa sala vip, foi simpático, mas ninguém sabia o que perguntar. Roberto Rossellini se deixou envolver por artistas brasileiros, seguiu até o Ibirapuera, deixou-se fotografar junto ao monumento. Kim Novak - superstar máxima na época - desceu tranquila, deu entrevistas, sorriu, sem um mínimo gesto de temperamentalismo. Tenho uma foto em que estamos sentados numa mesa, bunda com bunda. Cobri a chegada de Nelson Rockefeller, o milionário. Quem ver a foto, atente para os óculos da mulher dele, americana alta, espigada, de chapéu e luva. As mulheres viajavam com elegância. E hoje?
Última foto. Imagem de uma época que se foi. Somente quem viajou de trem, quem muito viajou pela Companhia Paulista, vai reconhecer o logo no vidro da porta do vagão: CP. O máximo de conforto, luxo e comodidade. German Lorca nos devolve a nós mesmos, resgata um Brasil que se prezava mais.
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