GAZETA DO POVO - PR - 09/08
O acordo entre o TSE e o Serasa, desfeito após ter sido denunciado, mostra o desprezo dos burocratas pela privacidade dos cidadãos
Quem já frequentou um parque de diversões certamente já viveu a experiência de andar num “trem fantasma” – brinquedo que leva passageiros embarcados num pequeno vagão que trafega vertiginosamente sobre trilhos montados num corredor escuro. A cada curva, repentinamente, surgem das sombras monstros, caveiras e esqueletos ameaçadores. Ouvem-se gritos e rugidos e há até quem, ao fim da brincadeira, sofra os efeitos de acelerada taquicardia.
Pois se parecem também um trem fantasma os sustos que a cada dia acometem a população brasileira diante das surpresas horrendas que respeitáveis instituições públicas lhe pregam. Nessa última curva, revelada nesta semana, soube-se que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), guardião dos dados pessoais dos 141 milhões de eleitores brasileiros, havia cedido esse valioso acervo para uso do Serasa – entidade privada que, mediante pagamento, fornece informações fisco-creditícias para bancos e empresas.
Em troca do quê? Outro susto: o TSE seria recompensado com a cessão de quatro “assinaturas digitais”, instrumento eletrônico que permitiria a alguns funcionários da corte o acesso a dados cadastrais centralizados pelo Serasa. E pelo prazo de apenas dois anos.
A denúncia foi do jornal O Estado de S.Paulo e pegou de surpresa até mesmo a cúpula do tribunal, que disse nada saber do “acordo de cooperação técnica” que a instituição, numa das voltas escuras do trem fantasma, havia firmado com o Serasa. A presidente do TSE, ministra Carmen Lúcia, condenou a medida e, em seguida, a corregedora-geral da Justiça Eleitoral, ministra Laurita Vaz, determinou a imediata suspensão do acordo esdrúxulo.
De fato, nada tão impróprio e inadmissível quanto uma instituição republicana, do porte e da respeitabilidade do TSE, firmar esse tipo de convênio, dispondo-se a fornecer meios de acesso a dados de todos os cidadãos brasileiros detentores de títulos eleitorais – isto é, todas as pessoas acima de 18 anos de idade, e parte dos jovens com 16 e 17 anos. Não apenas se estaria perpetrando uma violação ao princípio constitucional que protege a privacidade individual como também, para dizer o mínimo, estaria se desrespeitando até mesmo o Código do Consumidor, que não permite a venda, sem autorização, de dados pessoais que não sejam de interesse público – exatamente o que estava prestes a acontecer.
O Serasa é uma empresa privada cujos faturamento e lucro advêm da venda de informações que reúne em seus bancos de dados e que se destinam a proteger instituições de crédito e estabelecimentos comerciais em suas relações com clientes, tomadores de empréstimos ou compradores. Ora, é inconcebível que os milhões de brasileiros que ainda recentemente foram obrigados a enfrentar filas gigantescas para atualizar seus cadastros eleitorais os vissem agora, sem sua autorização, colocados à disposição graciosa para frutificar em lucro alheio.
Como bem lembrou o vice-presidente do TSE, ministro Marco Aurélio, o cadastro do TSE é sigiloso e o acesso a ele só é permitido quando sob autorização judicial. Portanto, não é cabível que um simples instrumento administrativo, que nem mesmo passou pelo crivo da cúpula da Justiça Eleitoral, seja o caminho correto para o fornecimento a terceiros de seus arquivos. Tanto quanto uma agressão à lei, estava implícita também uma agressão à ética pública.
Não deixa de ser irônico que, no momento em que diversos países, incluindo o Brasil, deixam clara sua indignação com a espionagem norte-americana que vasculhava dados de internautas globalmente, um ente público brasileiro estivesse prestes a entregar, praticamente de mão beijada, os dados de dezenas de milhões de cidadãos à iniciativa privada. Isso só indica que o desprezo de burocratas em relação à privacidade alheia não é exclusividade de país nenhum.
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