O Estado de S.Paulo - 09/08
Pequenos grandes gestos acontecem nesta cidade. Uma ínfima delicadeza muda o nosso dia. Descia a pé pela rua Artur Azevedo para fazer uma entrevista, eram quase três da tarde, estava adiantado. Passei pela padaria AJ M&M, decidi entrar. Tenho fascínio por padarias. Essa é relativamente nova (nova para São Paulo) no bairro, sempre achei que tinha bom astral. Padarias me acompanham desde a infância, quando, de madrugada, ia com meu pai ao Palamone, em Araraquara, entrávamos numa fila, porque era guerra e tudo estava racionado. Não entendia aquela guerra tão distante. Meu pai tinha na mão o que ele chamava de cupons. Demorei a saber o significado. Era o racionamento. O pão era esquisito, mistura de farinha com fubá, se não me engano.
Eu via gente chegando depois de nós e entrando na frente, meu pai dizia: é o delegado, é o prefeito, o juiz, o sargento, o primo do dono. Por que furavam a fila? Aprendi cedo o que é a mordomia, hoje traduzida em carros oficiais, helicópteros, verbas de representação e etc. Havia uma mulher sorridente que passava por nós, entrava direto na padaria, sem que ninguém reclamasse. Todas as vezes eu ouvia: "É a mulher do padre". Também isso ficou mistério, padre não se casava.
As padarias podiam ser "ambulantes". No meio da tarde, uma carrocinha circulava pelas ruas. Não era uma carroça comum, era uma espécie de grande baú e o carroceiro tocava uma corneta, outros gritavam alto: Paaadeeeirooo!! As mulheres saíam ao portão.
Hora do café das duas, duas e meia. O almoço tinha sido entre 11 e 11 e meia. Aquele baú trazia preciosidades como o pão doce de coco, um primor. Era uma fita enrolada, tendo coco no meio, respingado de açúcar. Havia bengalas quentinhas, pão francês cheirando forno, pão de banha, pão sovado (mais caro), bolachas. Cada padaria tinha seus produtos, concorriam em sabor, qualidade. Minha avó comprava pães e a cada semana, certo dia, fazia rabanadas douradas que desapareciam num minuto da mesa. Quanto à carrocinha, foi o primeiro delivery que conheci na vida.
Pensava nessas coisas, deliciado, enquanto subia os degraus da AJ M&M. Nome curioso. Ao entrar, o cheiro emanado dos balcões abertos me trouxe igualmente o final de noite da juventude. Eu saía do cinema, ia todas as noites, tinha uma "permanente", como se dizia, espécie de passe livre, que me permitia entrar de graça, afinal eu era o crítico. Um dia, o velho Graciano, dono dos cinemas, e pai do Roberto que controlava as duas salas, me perguntou: "Você entra de graça e ainda mete o pau nos filmes?". Roberto entrou na conversa: "Pai, ele é crítico, precisa criticar. Crítico não gosta. Ele tem o direito, gosto do que ele escreve, me divirto. Vejo coisas que não vi no filme. Além do mais, pai, ele vem, assiste, escreve no dia seguinte, a crítica é publicada dois dias depois. O filme já saiu de cartaz. Não faz mal nenhum. Nem coloca nem tira ninguém da sala". Foi das primeiras lições de democracia que assisti e de lucidez quanto ao poder da crítica. Os filmes eram mudados a cada dois dias. Belos tempos.
Saía do cinema, pegava a bicicleta Monark, de freio no pé (pedalando para trás, brecava), que tinha ficado junto à sorveteria do Uesato, e partia para a padaria do Lima, no Carmo, oposto da cidade. Belos tempos, nunca me roubaram a bicicleta.
Chegava no momento em que saía uma fornada de pães, a derradeira. Sentia o cheiro a mais de três quadras. Eu gostava de pão quente antes de dormir, lambuzado de manteiga (Aviação, claro), enquanto ligava o rádio baixinho para ouvir O Sombra. A voz soturna dizia o slogan: "Ninguém sabe o mal que se esconde nos corações alheios, o Sombra sabe". Tremia de pavor no escuro, mas adorava. Comia o pão lentamente.
Quando morei na Alemanha, meu deslumbramento era total com as vitrines das padarias. Certa vez em Hamburgo, acompanhado da escritora portuguesa Lidia Jorge, ficamos meia hora diante de uma vitrine, sem conseguir decidir por um pão de centeio, um frankenbrot, ou um kummelbrot, ou o kiele brot, ou o korn brot. Tudo o que sabíamos é que brot é pão. Desistimos e comemos uma curry wurst em um Imbiss.
Entrei na AJ M&M, percorri as vitrines, encantado, doces tortas, empadões. Dei com uma travessa de rabanadas crocantes, chamativas, olhei deliciado. Um senhor se aproximou:
- Posso ajudar?
- Queria uma rabanada.
- Quantas?
- Uma só.
- Uma?
Ele me olhou, sorriu, me entregou um pratinho com uma, perguntei:
- Quanto é, onde pago?
- Presente meu, coma sua rabanada, tomara goste.
Aquele senhor, dono, ou gerente, seja quem for, não teve ideia, naquele momento do tamanho do seu pequeno gesto, das lembranças que acionou. Mostrou acima de tudo que há momentos de generosidade nesta cidade que todos acusam de violenta, caótica, confusa, difícil, egoísta. Desci a rua comendo lentamente a rabanada dourada, polvilhada de açúcar e de generosidade.
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