FOLHA DE SP - 16/06
Seres vivos têm o propósito de preservar sua existência; é difícil aceitar que não há um objetivo maior
Não me refiro aqui à vida de cada um, que envolve nossas escolhas e esperanças, os planos que traçamos no decorrer dos anos. Nossas vidas, claro, têm, ou deveriam ter, um ou mais propósitos.
Falo da vida como fenômeno natural, essa estranha organização da matéria dotada de autonomia, capaz de absorver energia do ambiente à sua volta e de se preservar por meio da reprodução.
O tema gera confusão. Precisamos ter cuidado. Todas as formas de vida têm um propósito essencial: sobreviver. Esse é ainda mais importante do que o outro propósito, reprodução. Afinal, bebês e vovôs estão vivos, mas não se reproduzem. Pode-se até dizer que a vida é uma forma de organização material que tem o ímpeto de se preservar.
Essa é uma diferença essencial que distingue seres vivos de outras formas de organização material, como estrelas ou rochas, que não têm o ímpeto de se preservar: apenas existem, passivamente, entregues aos processos físicos que definem suas interações. No caso das rochas, a existência é delimitada pela sua interação com a erosão --água mole em pedra dura tanto bate até que fura. No caso das estrelas, existem enquanto têm combustível suficiente no seu centro (hidrogênio) para resistir à atração gravitacional, que levará à sua implosão.
Todas as formas vivas têm o propósito de preservar sua existência. Essa é a diferença essencial entre o vivo e o não vivo.
A confusão com relação à questão do propósito vem quando nos deparamos com a diversidade das formas de vida. Dada tanta riqueza, tanta criatividade, fica difícil de aceitar que tudo surgiu sem um propósito maior, sem a intenção de criar criaturas cada vez mais complexas.
A coisa complica ainda mais quando aprendemos que a história da vida na Terra mostra uma complexidade crescente. A vida aqui surgiu há pelo menos 3,5 bilhões de anos. Desses, os primeiros 2,5 bilhões foram dominados por seres unicelulares, bactérias apenas. Apenas cerca de 600 milhões de anos atrás é que a diversificação começou para valer. Na famosa explosão do Cambriano, em torno de 550 milhões de anos atrás, a complexidade da vida decolou. De lá para cá, mais criaturas foram surgindo no mar, na terra e no ar, com complexidade e diversificação crescente.
Fica difícil aceitar que não existe um propósito maior na vida, que é o de aumentar sua complexidade. O clímax dessa complexidade seríamos nós, humanos. Esse propósito oculto é chamado teleologia.
Mas essa conclusão é falsa. Não existe um "plano" de tornar a vida complexa a ponto de gerar formas inteligentes. Vejam os dinossauros, que existiram por 150 milhões de anos e permaneceram burros. O que a vida quer é se preservar. Contanto que esteja adaptada ao ambiente, continuará bem, com mutações ocorrendo sem grandes revoluções.
Fundamental nessa dinâmica é o acoplamento da vida ao ambiente. Variações ocorrem quando o ambiente muda. Se mudássemos algo na história da Terra, como a queda do asteroide que eliminou os dinossauros 65 milhões de anos atrás, a história da vida mudaria também. Provavelmente não estaríamos aqui. Na natureza, criação e destruição andam juntas. Mas nessa coreografia não existe coreógrafo.
2 comentários:
Qual o endereço do site ou blog do Marcelo Gleiser?
Como poderia eu me comunicar com ele?
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