O Estado de S.Paulo - 16/06
O pãozinho não é lá essas coisas e o barulho nos obriga a esgoelar o papo - e mesmo assim lá vou eu, toda manhã, faz anos, tomar café com Leite, isto é, com meu amigo Paulo Leite. A amizade cobra seus pedágios.
Desprovida de encantos, nossa padoca, em compensação, oferece o espetáculo de uma fauna cujas variadas espécies vou aos poucos registrando. Claro que há gente normal, se é que isso existe, mas algo me diz que também você se liga mais nas bizarrias. Vamos a elas, pois.
O time dos sósias, por exemplo. Uma versão inflada da Ana Paula Arósio, a cada dia mais cheia de si. Um Henry Kissinger acompanhado de uma criatura cujo negror capilar é de matar de inveja a mais retinta das graúnas, e cuja idade talvez não se possa determinar sem recurso ao carbono 14. Também dá as caras uma senhora que, na avaliação do Paulo Leite, passaria por irmã do cardeal Arns. Não põe os pés na padaria desde o dia em que barraram a entrada de seu cachorrinho: da entrada, a dona gesticula, levanta a voz e ali é atendida, com a maior solicitude.
Seriam tipos até convencionais se comparados àquela senhora de boina vermelho vivo, saia e tênis, riponga muito après la lettre, como que saída de um filme de Jacques Tati, acha o Paulo, ou uma Frida Kahlo sem bigode, acho eu. Desenvolta, dá a impressão de ser uma pessoa famosa que ninguém conhece.
Nossa gaiola de aves raras inclui ainda um psiquiatra de meia-idade que fez da padoca o seu escritório - e mesmo seu consultório, pois já o vi passar receita. Espalha papéis na mesa, leva horas escrevendo. Autossuficiente, não é raro que traga sua própria comida. E dá trabalho, ô!, aos atendentes, cuja mão trata de adoçar; os habitués já não estranham quando pede a um deles que vá levar ou buscar alguma coisa em sua casa, nas imediações; levar os sapatos, acredite, e trazer os chinelos. Galante, envia pequenos farnéis para a mulher, de quem já sabemos que adora bolinho de bacalhau.
Faz tempo que não aparece (estará ainda entre nós?) uma senhora de seus 70 anos, organista numa igreja e dona de uma bela voz que por vezes desatava em plena padaria, dependendo do número de caipirinhas matinais. Sujeita a súbitos apagões, em geral sem maiores consequências, madame um dia desmaiou no momento em que ia abocanhar uma coxinha, e, ao desabar, ficou entalada entre o banco e o balcão - pero sin perder o salgadinho jamás. Convenhamos: não há dignidade que resista a um desmaio de coxinha em punho.
Não menos folgado que o nosso psiquiatra é um camarada gordo, diria mesmo hipopotâmico, que como a dama do cachorrinho nunca entra na padoca: encarrega a mulher, igualmente volumosa, de lhe trazer víveres que se põe a mastigar bovinamente, de olhos fechados, no interior da perua estacionada à porta, aonde o garçom irá levar a maquineta do cartão de crédito.
Poderia falar ainda do casal que, para driblar a proibição, acondicionava o lulu num carrinho de bebê. Mas não quero pedir a conta sem registrar também aquilo que, em meio à algaravia dos fregueses e ao estrépito do liquidificador, pode fazer a alegria de um écouteur - sim, a mesma língua francesa que nos deu "voyeur" dispõe de uma palavra, menos usada, é verdade, para designar o "escutador", o xereta, se você prefere. Como este cronista, a cujas orelhas têm chegado deliciosos farelos de conversa alheia. O papo imutável, por exemplo, daquelas duas senhoras a se lamuriar o tempo todo - uma por já não ter marido, a outra por ainda conservar o seu. No quesito pérolas verbais, a padoca nunca me decepciona. Deixo a você, com votos de bom domingo, as últimas que vieram na rede da minha indiscrição:
"Trabalhei anos no ramo de autopeças, mas foi preciso minha esposa falecer para eu descobrir que a vida não é só pneu...".
"E pensar que fiz uma escova de 40 reais para me encontrar com ele... Fora os 25 do táxi!".
"Ah, tenho uma pena dessas prostitutas... Ficam aí esperando quem não combinou de vir...".
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