O GLOBO - 16/06
Já passaram, um atrás do outro, o Dia dos Namorados e o dia de Santo Antônio. Não seriam mais assunto para este domingo e cheguei a pensar em escrever sobre a confusão criada pela descoberta (da pólvora) de que o governo americano bisbilhota a internet, com acesso a dados tidos como estritamente pessoais e invioláveis. Mas tratei muito disto aqui e sei que não adianta espernear, porque privacidade é mesmo coisa do passado e, muito em breve, todo mundo será monitorado de várias formas, inclusive em pensamentos antes íntimos. E não somente pelo governo americano, mas por praticamente todos os governos e por diversas entidades particulares. Agora mesmo, acabo de ler que, em Londres, já existem catorze câmeras de segurança e monitoramento para cada habitante. Isso por enquanto, porque o cômputo continua a aumentar e talvez as câmeras venham a ser mais numerosas que as pessoas.
Não, achei melhor não ficar mexendo nessas assombrações. Espero que esteja fazendo um belo domingo lá fora e não vamos estragá-lo com conjeturas soturnas. Isso fica para depois do Fantástico, quando toca aquela musiquinha que prenuncia desumanamente a segunda-feira. Prefiro então homenagear, apesar do pequeno atraso, Santo Antônio e São Gonçalo, dois portugueses admiráveis, que sem dúvida merecem a grande popularidade de que desfrutam. Faço a homenagem a ambos, mas me ocupo de São Gonçalo, que, aliás, não tem o título oficial de santo e, sim, de beato. O povo, porém, não toma conhecimento dessas minúcias técnicas e persiste em tratá-lo como santo.
Peço licença para dirigir-me especialmente às encantadoras e gentis leitoras. As mulheres sempre foram maioria na veneração e no diálogo com esses dois santos, muito invocados quando se trata de conseguir marido ou o genérico adequado. Claro que nenhuma das leitoras tem problema nessa área, nem precisa de ajuda, mas nunca é demais informar-se sobre a valiosa assistência que os santos podem prestar às eventuais necessitadas — quem sabe uma amiga, uma parenta, uma vizinha. De vez em quando, escuto comentários sobre como o homem anda difícil hoje em dia, mercadoria disputada às vezes até no tapa e conservada a duras penas.
Não sei se isso é verdade, mas São Gonçalo com certeza ajuda. No Recôncavo Baiano, antigamente, as festas de São Gonçalo (São Gonçalo do Amarante, que não se deve confundir com outro português do mesmo nome, São Gonçalo de Lagos, que é do Algarve e também beato) eram meio avançadinhas, mesmo para os padrões de hoje. Nunca assisti a uma dessas observâncias, mas os mais velhos contavam que se tratava de um furdunço de alta categoria, na maior gandaia imaginável. Havia uma procissão em que o santo era carregado numa charola de cores berrantes, ao som de instrumentos profanos e modinhas mais ainda, com as mulheres aos remelexos por todo o percurso e provocando os homens. A maior parte dos fiéis não o chamava de São Gonçalo, mas de São Gonçalinho, ou então apenas Gonçalinho, e era um foguetório que levava o dia todo, sempre com vivas a Gonçalinho, que por sinal até fartura de pescado providenciava para o dez de janeiro, seu dia, e ninguém passava fome. Diz o povo que a imagem de Gonçalinho no andor era vestida numa roupa de pano e não de madeira mesmo, como os outros santos, porque — sei que escandalizo, mas o primeiro dever do repórter é para com a verdade — ele ficava nu, por baixo de uma espécie de camisolão, claro que sem cueca ou ceroula. Aí, diz ainda esse povo falador, volta e meia uma das desfilantes ia lá, levantava a saia do santo e puxava um tal cordão que ele tinha nas costas, cordão este que acionava — como direi? — um falo deste tamanho, o qual, se afagado brevemente pela devota, asseguraria a concessão do benefício pedido. É voz geral que, quando feito com fé, não houve caso de pedido desatendido.
E, enfim, a coisa era de tal sorte que alguns padres se recusavam a participar, embora se creia que a maioria deles fosse multiculturalista e ecumênica e não fizesse grandes objeções a essas práticas nativas, chegando mesmo, com certeza para reforçar a catequização da turba, a dar uma saracoteada ou outra, mas tudo muito inocente. No entanto, talvez os mais conservadores tivessem razão, porque, conhecendo como conheço aquelas plagas, sei que é possível a coisa ter passado um pouco dos limites, uma vez ou outra. Este talvez seja o caso do que se segue. Atenção! Vou divulgar, creio que em primeiríssima mão na imprensa diária deste país, a quadrinha chave que as fiéis solteironas, ou em regime de animação suspensa, declamavam com fervor. É da lavra popular, todos podem usá-la livremente. Diz outra vez o povo que até hoje, se bem recitada e, melhor ainda, combinada com alguma simpatia de confiança, é praticamente tiro e queda. Pode ser que os mais austeros entre vocês queiram retirar as crianças da sala neste momento, porque a singela quadrinha reza o seguinte: “São Gonçalo do Amarante,/Casai-me, que bem podeis,/Pois tenho teias d’aranha/No lugar que bem sabeis.” Sussurrados imperceptivelmente diante da pessoa amada, os versos, pelo que me relataram de seu desempenho, rendem pelo menos uma ficada de terceiro grau.
Esse pungente apelo, repetido há séculos em Portugal e no Brasil, também tem fama de infalível. Santo Antônio, que atende a vários outros departamentos e até oficial do Exército português já foi, quando chegou a ser rebaixado de posto e tomar esbregue do padre Antônio Vieira, está sempre muito assoberbado, Gonçalinho tem bem mais tempo e disposição para certas empreitadas. Fico contente por ter encontrado uma oportunidade de chamar a atenção para os serviços dele, que andavam meio esquecidos. Creio que ainda há tempo para aproveitá-los, antes que o governo os regulamente.
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