GAZETA DO POVO - PR - 26/05
“Receber bem” e “viver junto” precisam deixar de ser expressões da etiqueta, convertendo-se em item essencial de toda e qualquer política pública
A palavra hospitalidade está associada a receber bem, com rapapés e simpatia. É a arte do bem-estar com as visitas. Pode ser também uma virtude nacionalista. Brasileiros, mexicanos, marroquinos, entre outros, são apontados como povos hospitaleiros por excelência. Um e outro sentido indicam que a hospitalidade é ora uma questão da vida privada, ora um traço cultural.
Foi-se o tempo em que era simples definir hospitalidade e ensiná-la aos filhos, fazendo-os polidos à sala de jantar. O “viver junto” e o “respeito ao outro” se impõem cada vez mais como chaves para o êxito das políticas públicas. É assunto para rodada de negociações – nas altas esferas, inclusive. E essa mudança é desconfortável. O palavreado corporativo parece não ficar muito à vontade ao ter de lidar conceitos tão comuns. Não lhe parecem palpáveis. Não podem ser mensurados. Nem capitalizados. Escapam aos interesses imediatos do Banco Mundial. Mas já se sabe que não há dinheiro nem projeto que chegue a bom termo sem estender os significados da palavra hospitalidade.
Não se trata de uma conversa iniciada ontem. A nova hospitalidade tem um dos seus marcos na xenofobia europeia, manifesta sem pudores na década de 1990 e sedimentada nos anos 2000, na forma de partidos políticos, inclusive. Foi um período tenso o bastante para que intelectuais dos quatro costados se apressassem a estudar o fenômeno. Chamaram-no de declínio de civilização. De nova invasão bárbara. Trabalharam pesado, em busca das raízes da intolerância, um assunto que parecia resolvido em escritos como A condição humana, de Hannah Arendt, ou nos minutos iniciais do documentário Arquitetura da destruição, de Peter Cohen.
O esforço rendeu frutos. Nomes como Jacques Derrida e Anne Dufourmantelle – para citar dois – revisaram as origens filosóficas do medo do outro, ou, na mesma medida, a negação de sua existência. Os intelectuais chegaram a conclusões tão elementares quanto reveladoras. O problema de “receber bem” está ligado ao estrangeiro – “aquele de quem costumamos desconfiar”. Ele porta a diferença. Deve ser tratado com reserva. Pode perturbar a ordem coletiva, a duras penas estabelecida, em séculos de pactos sociais e econômicos.
Mas existem níveis de maior ou menor aceitação entre os forasteiros. Uns são mais estranhos à ordem do que os outros, como bem poderia ter dito George Orwell. E assim caminha a humanidade – fazendo a seleção de quem pode, ou não, pisar em território alheio. Os debates sobre o medo do estrangeiro, e a reincidência dos europeus nas velhas práticas de xenofobia, estavam e estão longe de ser um rodapé do noticiário internacional. Assim como o termo “hospitalidade” ganha novas acepções – saindo da esfera privada para a pública – a palavra “estrangeiro” também tem seu sentido esgarçado. Somos milhões de estrangeiros nascidos nos mesmos países. Não somos nações. Somos guetos.
Vale repetir – não se trata de uma conversa fácil, ainda que pareça. Pensar o mundo do prisma da hospitalidade exige recorrer à geografia humana, na busca de entender o DNA do ódio que perpassa as relações mais chãs. Ali se escondem as “causas secretas”. Elas emergem em comentários inocentes e graciosos, que eclodem em linchamento. O desprezo miúdo pelo outro pode fazer de uma cidade, ou de um país, um lugar impossível. Esse dinamismo é tão forte que se confunde com a humanidade. Em tempos sombrios, lembre-se, pode ameaçá-la. A hospitalidade é o remédio – nem sempre amargo. Nisso precisamos acreditar, e praticar, da porta para fora. É boa educação. É boa política.
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