O Estado de S.Paulo - 26/05
E a Marli, que está querendo me vender um túmulo?
Não sei se a iniciativa dela tem a ver com meu assunto da semana passada - esse projeto de lei que tornaria possível, na cidade de São Paulo, enterrar bicho em sepultura de gente.
Não, a Marli certamente não me leu. Saberia que já decidi qual destino dar a minha carcaça, não antes do momento oportuno: o forno, não as profundezas da terra. Como diz a boa amiga dona Alzira: se não subi na vida, não há de ser na morte que aceitarei descer. Como trilha sonora, talvez fique com o Agora É Cinza de Bide e Marçal, samba que vem balançando esqueletos desde o carnaval de 1934. E quero ir sozinho: além de não ter bicho, estou em condições de afirmar, como o Waldick Soriano, que eu não sou cachorro não.
"Aproveite este momento de serenidade para escolher o melhor", busca me tentar a (senhora? senhorita?) Marli, sob a forma de um prospecto insinuado faz uns dias sob a minha porta. "Agora é o momento certo para decidir sobre a reserva de um jazigo", alerta a diligente corretora, exumando argumentos que beiram o depois-não-venha-dizer-que-não-avisei: "Se deixar para depois, em um momento de fatalidade na família você correrá o risco de tomar uma decisão precipitada, inadequada, escolhendo um local indesejável e ainda arcando com despesas desnecessárias". Já pensou, morrer numa nota preta?
Não me escapa a insistência na palavra "momento", três vezes encravada na prosa funéreo-aliciadora da Marli. Acuso o golpe. O puxão de orelhas: insinuado está que perdi tempo, pois o cemitério-parque onde ela quer descarnar meus ossos existe há quase 30 anos. Gente mais esperta com certeza já se habilitou, sendo plausível a hipótese de que alguns, mais vivos do que eu, lá estejam, devidamente mortos, a desfrutar do conforto póstumo com que a Marli, de alfanje em punho, vem me acenar.
Por exemplo, os diferentes tipos de tumbas que eu poderia adquirir, dependendo, claro, da profundidade de meu saldo bancário. O impresso não menciona valores, mas é possível saber que a opção mais econômica é aquela que, num prédio residencial, corresponderia a um quarto e sala: "Duas gavetas sobrepostas sem ossário". Na medida para Senhor & Senhora sem prole. Ou Senhor/Senhora + animal de estimação, se a tal lei passar. Nada da claustrofobia de uma quitinete mortuária.
Se bem entendi, isso é o básico numa escala ascendente que, na ponta mais alta, oferece "seis gavetas mais área de serviço com ossário". Área de serviço! E capacidade para gente à beça, pelo menos seis entes queridos - sem que se possa falar, por favor, em cortiço (mortiço?). Um por andar, quer dizer, um por gaveta. Top de linha. Independentemente do produto escolhido, o freguês é instado a considerar também a oferta de "planos preventivos", seja lá o que for isso, e "pronto sepultamento". Epa. Vamos devagar.
Olha, Marli, você me desculpe, mas eu passo (não desta para melhor, ainda não!). Grato pelo oferecimento. Saiba, porém, que seu esforço persuasório pode não ter sido em vão: tomei a liberdade de repassar o prospecto para a dona Alzira.
Não que a amiga esteja, como certos preços, pela hora da morte; ao contrário, está "forte e sacudida", como em seu tempo de moça se dizia. Contudo, este não é seu parecer. Ela começa a achar (e pode não estar de todo equivocada) que "o mundo não é um bom lugar para se viver". Viajadeira que sempre foi, ultimamente se enfurnou em sua toca. Reagiu mal quando a filha lhe ofereceu um passeio em Roma: "Se é para ver ruína", esconjurou, "sai mais barato olhar no espelho!". Mal entrada na casa dos 80, deu de se achar a criatura mais velha sobre a Terra, agora que entre nós já não estão o Niemeyer e a dona Canô. "Sou do tempo", costuma datar-se, "em que algum decote podia ser chamado de 'ousado'". Outro dia, a propósito de nada, me veio com esta: "Não é de arrepiar, a ideia de que nossa caveira está prontinha dentro da gente?".
Não estou autorizado a falar pela dona Alzira, Marli, mas desconfio que ali tem jogo.
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