O GLOBO - 28/04
O general Emílio Garrastazu Médici governou o Brasil de 1969 a 1974. Foi o mais popular dos ditadores e deixou uma história de absoluta austeridade pessoal. Sua mulher, Scylla, mobiliou a granja do Riacho Fundo com peças de um depósito do serviço público. O casal ia para lá no fim de semana, fugindo da estufa do Alvorada. Vinham de famílias abastadas do pampa gaúcho e tinham dois filhos, Roberto e Sérgio. Todos passaram pelo poder sem que deles se tenha ouvido sequer mexericos. Sérgio morreu em 2008.
Em 1984, um ano antes de morrer, aos 79 anos, o general adotou como filha uma neta adulta. À época a lei permitia dois tipos de adoções: a simples, que só transferia direitos sobre pensões, e a plena, que se estendia ao patrimônio dos pais. A adoção simples era prática comum entre servidores civis e militares e avançava apenas sobre o cofre da Previdência da Viúva. Pode-se estimar que a pensão esteja hoje em algo como R$ 9.000 mensais. Médici valeu-se dessa modalidade.
Veio a Constituição de 1988 e igualou os direitos de todos os filhos, legítimos, ilegítimos ou adotivos, plenos ou simples.
Herdeira de 50% dos bens do marido, Scylla morreu em 2003, aos 95 anos, sob a vigência da nova Constituição. Está no Superior Tribunal de Justiça uma ação da filha de Roberto Médici, neta/filha adotiva do general. Ela quer se habilitar na partilha da fazenda que a mãe/avó deixou em Bagé. Coisa de alguns milhões de reais.
Se a neta/filha prevalecer, o patrimônio de Scylla, que deveria ser dividido entre Roberto e os herdeiros de Sérgio, passará por nova partilha e um ramo da família ficará com dois terços do monte.
Se o general quisesse dividir o seu patrimônio por três, poderia ter optado pela adoção plena. Logo ele, que impedia o ministro Delfim Netto de aumentar o preço da carne para ter tempo de vender na baixa os bois da fazenda que hoje está no centro do litígio. O general não queria que o acusassem de ter ganho com a alta da arroba do boi.
AVISO AMIGO
No mesmo forno de que saiu a blindagem dos partidos existentes (e domesticados) cozinha-se um avanço sobre os meios de comunicação impressos e eletrônicos. Virá disfarçado na pele de cordeiro do direito de resposta.
É uma modalidade do "bateu, levou", que brotou no governo Collor e deu no que deu.
Trata-se de assegurar o direito de exigir a publicação das seguintes informações:
1) Não houve mensalão.
2) Rose Noronha era apenas uma funcionária de terceiro escalão.
3) Como já foi demonstrado, os salários de R$ 15 mil para garçons do Senado decorrem de procedimentos legais e legítimos.
COUTINHO 2.0
O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, anunciou o fim do modelo de financiamento para "campeões nacionais". Esse foi o apelido dado a setores e empresas protegidas pelo comissariado e borrifadas com grandes empréstimos a juros camaradas.
Essa passa ser a segunda entrada de Coutinho na história da indústria brasileira. A primeira, no fim do século passado, deu-se quando o governo de José Sarney perfilhou a política de informática dos generais, fecundada no SNI. Nessa época o doutor era secretário-executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Recordar é viver: enquanto durou essa ruinosa política de proteção a donatários nacionais, era mais fácil entrar no Brasil com um quilo de cocaína do que com um computador.
Poucos delírios da ditadura fizeram tamanho mal ao país.
DESALENTO
Durante o julgamento do mensalão houve petistas que acreditaram numa redução do poder do comissariado paulista, de suas obras e suas pompas.
Passou o tempo, ficaram mais zangados, porém perderam a ilusão.
GERENTONA
A doutora Dilma é uma gerentona e governa com 39 ministérios, entre os quais o das Relações Institucionais. Funciona como um varejão em que se trocam verbas por votos e se redigem emendas constitucionais como se fossem noticiário de letreiros luminosos.
Conseguiu fabricar um conflito institucional do Congresso com o Supremo Tribunal Federal a partir de uma manobra eleitoral de salão de sinuca.
SABEDORIA
De quem já viu o governo por dentro:
"Há hoje três ministros da Fazenda: o secretário do Tesouro, Arno Augustin, o secretário-executivo Nelson Barbosa e a presidente Dilma Rousseff."
TRITURADORES
O corregedor-geral da Justiça Militar do Rio Grande do Sul criou um programa destinado a destruir os velhos processos de Inquéritos Policiais Militares lá arquivados.
Ao contrário do que fizeram os comandantes militares na queima de documentos da ditadura, desta vez cada processo destruído será acompanhado de um registro formal com a identificação de quem mandou triturar, com três testemunhas. Ademais, será dado um prazo de 45 dias para que alguém peça a preservação do processo.
A iniciativa promete conservar peças históricas, mas falta definir o que é "histórico". Noves fora o fato de que triturar documentos judiciais resulta em inevitável destruição da memória. Todo mundo ganharia se esse trabalho tivesse o acompanhamento oficial de organizações de defesa dos direitos humanos.
O corregedor poderia oferecer seu arquivo a alguma universidade. Pelo edital, os processos virarão aparas de papel e serão vendidos. O dinheiro arrecadado irá para o Fundo de Reaparelhamento do Poder Judiciário. Assim a burocracia se reaparelha destruindo a história.
Outra fábula do andar de cima
De uma hora para outra, o reconhecimento de que os empregados domésticos têm direito às mesmas garantias que seus empregadores se tornou um retrato das ansiedades do andar de cima nacional.
O doutor Romero Jucá, ex-líder do governo no Senado, defendeu a redução da multa em casos de demissão sem justa causa para algo como 5% ou 10% sobre o saldo do FGTS. Tudo bem, quando o patrão é demitido, embolsa a multa de 40%. Quando ele demite a cozinheira, paga só 10%. Afinal, ela é "gente diferenciada".
A doutora Gleisi Hoffmann trabalha com outra ideia, a de aumentar o desconto no Imposto de Renda para os gastos com empregados domésticos. Tudo bem, a Viúva subsidiará a contratação da cozinheira que, por sua vez, ralará na fila do SUS. Quem não tem empregado ficará com o custo social do mimo dado a quem tem.
Nada de novo no capitalismo brasileiro. Afinal, Adam Smith (1723-1790), o pai da economia moderna, vivia do seu trabalho como professor e diretor de uma alfândega. Quando interrompeu um curso, tentou devolver o dinheiro das aulas que não deu. Ensinou ao mundo as virtudes da "mão invisível" do mercado. Seu similar nacional, o Visconde de Cairu (1756-1835), conseguiu sua aposentadoria pública aos 50 anos e foi o primeiro professor de "ciência econômica" de Pindorama. Ganhava 400 mil réis (mais a aposentadoria), mas nunca deu uma aula. Cairu descobriu outra mão invisível, aquela que tira dinheiro de quem não o tem e o coloca no bolso de quem o tem.
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