O Estado de S.Paulo - 28/04
O forte daquele restaurante não é a comida. Outro dia levei lá a Ana Massochi, e a dona dos impecáveis Martín Fierro, La Frontera e Jacarandá torceu polidamente o atilado nariz. O mesmo deveria ter feito eu - afinal, já passei do ponto em que o camarada precisa bambolear a taça e dar a cafungada enológica para concluir que aquele vinho mais escuro é o tinto. Não quero agora bancar a Ana Massochi, mas a verdade é que nunca achei grande coisa o Auberge de Venise, no número 10 da rue Delambre, em Montparnasse. Por que, então, voltei lá com certa insistência?
Um pouco de sentimentalismo, admito, já que um apartamento no mesmo prédio foi a primeira residência parisiense de meus filhos, em 1995. Mas não só. Há no endereço outro valor agregado, no caso, literário: onde hoje fumegam as panelas do Auberge de Venise, há quase cem anos funcionou o Dingo American Bar, até hoje lembrado como reduto de escritores americanos e britânicos que a Gertrude Stein, espécie de madrinha da patota, chamou de "geração perdida". James Joyce, Ezra Pound, Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, aquele pessoal.
Pois bem, teria sido no Dingo que, numa noite de 1925, Hemingway e Fitzgerald se conheceram. Andavam pelos 26 e os 29 anos de idade, respectivamente, o primeiro apenas promissor e ainda durango, o segundo já endinheirado e festejado - é de 1925, exatamente, o romance O Grande Gatsby, sua obra-primíssima.
Todo mundo conhece a história, contada por Hemingway em Paris É uma Festa. A crer no narrador, "uma coisa muito estranha aconteceu" naquela noite. Fitzgerald, já meio chumbado, chegou em companhia de outro americano, Dunc Chaplin, famoso jogador de beisebol. Hemingway ficou mais impressionado com o atleta, "alto e simpático", embora décadas depois ainda pudesse descrever Fitzgerald em detalhes, num naturalismo quase comprometedor: "seus cabelos claros e ondulados", a "testa alta", os "olhos matreiros e cordiais", o queixo "bem construído", as orelhas "perfeitas", o nariz "de linhas finas" e os lábios "longos e delicados" que, "se fossem de moça, seriam os lábios da própria beleza". A tais pormenores teria condições de acrescentar o pênis do colega, que, como se sabe - está em outro capítulo de Paris É uma Festa -, ele veio a conhecer (de vista) algum tempo depois, no toalete de um restaurante, no afã de tranquilizar Fitzgerald, acabrunhado com as dimensões do referido apêndice.
Mas isso, repito, foi depois, quando a amizade já autorizaria tal tipo de inspeção íntima. Naquela noitada no Dingo, tudo o que em Fitzgerald lhe pareceu curto foram as pernas.
Estavam os dois num papo chocho quando o dono delas, tendo avançado por demais no champanhe, pareceu a pique de ter um treco. A cor, diz Hemingway, desapareceu de seu rosto, tornado cera, "uma verdadeira máscara mortuária, quase uma face cadavérica". Alarmado, o futuro romancista de Adeus às Armas enfiou Fitzgerald num táxi e o despachou para casa.
Quem sou eu para pôr em dúvida a veracidade do relato de Hemingway, ou mesmo o do gerente do Auberge de Venise, que orgulhoso me exibiu um calejado balcão de madeira como sendo relíquia do Dingo Bar. Quem sou eu. Mas tudo o que se diz de Fitzgerald em Paris É uma Festa ficou para mim meio suspeito depois que li, já faz tempo, um livro que algum editor brasileiro bem poderia mandar traduzir, Scott and Ernest, em que o pesquisador americano Matthew J. Bruccoli esmiúça a relação dos dois escritores. Bruccoli, autor também de uma estupenda biografia de Fitzgerald, Some Sort of Epic Grandeur, é dessas pacientes formigas que tanto serviço prestam com a rigorosa reconstituição de fatos e personagens. Não é que ele foi atrás de Dunc Chaplin, invocado por Hemingway como testemunha daquele encontro - e soube que o astro do beisebol só foi conhecer Paris muitos anos depois de 1925? Vai ver que a fantasia também tem pernas curtas.
Como ficamos? Tudo o que se pode fazer, a esta altura, é, estando em Paris, visitar o Auberge de Venise. Não recomendo a cozinha, mas o balcão, autêntico ou não, pode ser pretexto para um drinque.
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