O Estado de S.Paulo - 28/04
Quando, em 2005, Hugo Chávez, Néstor Kirchner e Diego Maradona encenaram a morte da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), em comício paralelo à 4.ª Cúpula das Américas, em Mar del Plata, o Brasil observou a distância, mas satisfeito. Era o que o governo brasileiro queria. Na ótica da política Sul-Sul, a Alca era anátema. Representaria um projeto de anexação à economia americana. A integração que corresponderia aos interesses nacionais brasileiros seria essencialmente sul-americana, assentada no eixo Brasil, Argentina e Venezuela, nessa ordem.
Essa premissa levou o governo brasileiro a estabelecer relações especiais com Buenos Aires e Caracas. Na longa controvérsia diplomática entre Argentina e Uruguai em torno da instalação de indústrias de papel e celulose na margem uruguaia do rio que divide os dois países, o Brasil lavou as mãos. Nem o bloqueio sistemático de pontes sobre o Rio Uruguai por manifestantes argentinos nem as solicitações do então presidente Tabaré Vázquez, temeroso de uma escalada do conflito, convenceram Brasília a assumir a mediação da discórdia, que acabou resolvida na Corte Internacional de Haia, em favor do Uruguai, em 2010.
Em relação à Venezuela, o governo brasileiro esmerou-se na política de dois pesos e duas medidas. Foi brando com Chávez diante de evidências do apoio de seu governo às Farc e duro com a Colômbia, como deveria ser, quando aviões colombianos bombardearam um acampamento da guerrilha no Equador, em 2008. Não disse uma palavra sobre o crescente autoritarismo do "socialismo do século 21", mas, invocando a cláusula democrática do Mercosul, foi implacável no apoio à punição ao Paraguai quando, em 2012, o Senado desse país votou o impeachment de Fernando Lugo. Seguiu-se a incorporação da Venezuela ao Mercosul, que se processou de maneira atípica e se consumou de modo arbitrário.
Em sua forma atual, o Mercosul reflete a preferência do governo brasileiro, desde Lula, e sobretudo com Dilma, por uma integração externa limitada, pouco exigente em matéria de abertura comercial e estabilidade das regras do jogo e altamente dependente da mediação governamental e do protagonismo do Estado, de suas empresas e de poucas grandes empresas nacionais. Prevalece em Brasília a visão de que o jogo assim armado é favorável ao País. Afinal, o Brasil entra em campo com gigantes como Vale e Petrobrás, companhias privadas brasileiras globais e um banco de investimento, o BNDES, sem igual no Hemisfério Sul. O objetivo comum de evitar a "subordinação" econômica da região aos Estados Unidos, as afinidades políticas entre governos e a suposta capacidade do Brasil de enquadrar o chavismo e o kirchnerismo dentro de certos limites de racionalidade econômica e prudência política assegurariam a convergência, sob a liderança do Brasil, dos interesses nacionais dos três países.
A realidade encarregou-se de mostrar que o "interesse nacional" assim definido tende a misturar negócios privados com políticas de Estado e políticas de Estado com preferências político-ideológicas, e que a propalada liderança brasileira é em grande parte ilusória. Nestes últimos anos, Venezuela e Argentina avançaram ininterruptamente na destruição das instituições formais e informais que assegurariam um funcionamento razoavelmente normal e previsível de suas economias e sociedades. E não hesitaram em contrariar os interesses do Brasil quando assim decidiram fazê-lo. Livres do "imperialismo americano", ambos os países foram submetidos à vontade de um poder nacional estatal exercido de forma personalista e arbitrária. Só isso pode explicar por que a Venezuela, com sua riqueza petroleira, num período de duradoura e exuberante alta dos preços internacionais do petróleo, vive hoje uma crise crônica de escassez de divisas e energia, com desabastecimento de vários produtos e apagões constantes. O mesmo se pode dizer, com diferença de grau apenas, em relação à Argentina, um país que dispõe de amplas reservas de gás natural e petróleo e oferta exportável de bens agropecuários, também favorecidos pelos preços internacionais. E que parece à beira de uma crise cambial.
Empresas brasileiras estão fechando as portas na Argentina. A Vale e a Petrobrás descobriram que o apoio do governo brasileiro não é suficiente para proteger os seus interesses no país vizinho. Na Venezuela, grandes empreiteiras brasileiras têm uma carteira de projetos estimada em US$ 20 bilhões. Só o incerto futuro dirá o retorno que terão esses investimentos. De alguma maneira, o setor privado se ajustará às novas realidades. Empresas desse porte têm capacidade de absorver perdas e redirecionar seus investimentos para lugares mais promissores. Não nos deveríamos preocupar com seus eventuais problemas, a não ser pelo fato de que recursos públicos foram empregados para tornar viável parte significativa de seus investimentos.
Mais importante é reorientar a política externa brasileira para a região, sem jogar fora o bebê com a água do banho. Ela não pode estar dissociada de uma visão mais realista do mundo. O Brasil não precisa reproduzir o modelo de inserção externa adotado por países como Chile, Peru, Colômbia e México. Mas não pode ignorar o fato de que a opção por um modelo Alca plus Ásia, com múltiplos tratados de livre comércio, maior abertura das economias, maior protagonismo do setor privado e menor discricionariedade governamental, vem produzindo resultados consistentemente superiores aos obtidos pela opção por um modelo Mercosul minus Alca. O que está em jogo não são siglas, mas uma revisão dos pressupostos que têm orientado a agenda de desenvolvimento e inserção externa do País nos últimos dez anos. Não é fazer mais do mesmo um pouco melhor. É fazer diferente. E isso requer uma nova visão e uma nova liderança política em Brasília.
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