O Estado de S.Paulo - 28/04
Na Nova Inglaterra, região dos EUA onde cresci, havia um ditado célebre sobre o clima. "Se você não gosta do tempo, espere um pouco." Na América Latina tropical, para onde me mudei, traiçoeiro não é o clima, mas as regras do jogo. "Se você não gosta da Constituição, espere um pouco."
Considere a PEC 33, incendiária proposta de emenda constitucional que submeteria certas decisões do Supremo Tribunal Federal à anuência do Congresso. O barulho que se seguiu em Brasília ("golpe", "choque institucional"). É preocupante, mas também bastante familiar. De certa forma, é a trilha sonora da América Latina, onde a democracia é feita de barro, moldado ao bel prazer da mão forte da hora.
Segundo estudiosos, nenhuma região do mundo mexe tanto com sua lei máxima quanto os países abaixo do Rio Grande. Em 18 nações da América Latina, a Constituição foi trocada, em média, 5,7 vezes ao longo do século 20. Cada uma, portanto, morreu moça, com parcos 28 anos de vida.
Os estudiosos falam de constituições plásticas e o historiador venezuelano, Daniel Lansberg-Rodriguez, de "wikiconstitucionalismo", em referência à Wikipedia, a enciclopédia digital, que pode ser acrescida ou reeditada por quase qualquer um.
Codificar leis é um jogo de mais-valia. Nesse quesito, o campeão de plasticidade é a República Dominicana, com 32 cartas distintas desde sua independência, em 1844. No seu cangote, segue a Venezuela, que promulgou 26 Cartas desde 1811.
Quem não redige uma nova Constituição, dá uma recauchutada na antiga. Na Argentina, mexer com a lei magna - a original data de 1853 e a reforma, de 1993 - não é uma coisa bem-vista. Para um executivo ambicioso, o jeito é cavar brechas ou medir forças políticas.
Assim, a presidente Cristina Kirchner desistiu da emenda que a deixaria concorrer a um terceiro mandato consecutivo e, agora, parte para cima do Judiciário, revidando quem dificultou sua ofensiva contra a mídia e para encampar empresas privadas.
O constitucionalismo hiperativo não é exclusividade dos caudilhos. Fernando Henrique Cardoso teve de recorrer a quase três dúzias de emendas constitucionais para remover obstáculos minuciosos da Carta de 1988, apenas para tocar a reforma econômica e promover as privatizações.
Alterações. Culpa das ditaduras? Claro, muitas novas Constituições foram promulgadas no calor da redemocratização.
O detalhismo quase barroco do novo modelo foi uma resposta direta ao grau de repressão do antigo. Resultado: a Constituição do Equador tem 411 emendas. A da Bolívia, 444. Em contraste, a Constituição dos EUA é a mesma há 300 anos, com 27 emendas.
No entanto, paradoxalmente, a cada nova Carta, aperta-se mais as rédeas do poder central latino-americano.
Como a inflação, quanto mais se cria leis máximas, menos vale a regra vigente. Melhor para os autocratas, que alavancam sua maioria política para remendar e interpretar as Cartas como querem, sob o verniz da legitimidade popular.
Pense na Venezuela. O então presidente Hugo Chávez foi derrotado na consulta popular para repaginar a Constituição em 2007. Entretanto, seu ás na manga foi a Carta Bolivariana original, de 1999, que o deixou com tantas ferramentas - controle do Judiciário e governo por decreto - que bastava apertar aqui e ali para conseguir o resto. Dessa forma, o líder revolucionário conseguiu, em 2009, aprovar a reeleição ilimitada, rejeitada dois anos antes.
Vale perguntar por que um caudilho se preocupa em promover leis que não pretenda respeitar? A resposta talvez esteja no DNA da nova autocracia. Em tempos do voto universal e com as câmeras e os eleitores sempre apostos, não convém simplesmente pisotear a vontade pública.
No entanto, envergar as regras, ou muito melhor, criar novas leis sob o argumento de "refundar o país," como quis o presidente boliviano Evo Morales, é uma outra história.
O resultado é o mesmo: desvalorizar a Constituição para maximizar o poder momentâneo. Mais honesto é o regime cubano de Fidel e Raúl Castro. Desde a revolução, em 1959, só houve uma Constituição. O resto é desabafo de bodega.
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