"Foram necessários anos para na Venezuela perceberem que o país estava virando Cuba. Depois passou muito tempo para constatarem que a Argentina estava virando Venezuela. Quando tempo vai levar para que no Brasil se conclua que o país está virando a Argentina?". O ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega garante ter ouvido esta pergunta retórica de mais de um investidor estrangeiro que o procurou em seu escritório de consultoria no Brasil.
Fidel Castro, Hugo Chávez, Perón e seus sucedâneos ou similares assombram o imaginário de empresários que investem no Brasil há muitas décadas. Os paralelismos se tornaram mais perturbadores para determinado tipo de público desde a posse da presidente Dilma Rousseff, quase coincidente com o agravamento da situação econômica do país presidido por Cristina Kirchner.
Sempre com velocidade menor e direção mais segura, o governo brasileiro foi se encaminhando para a mesma estrada adotada no país vizinho: mudou a política do Banco Central, adotando um viés "desenvolvimentista", com a taxa de juros mais baixa da história recente.
Surgiram dúvidas sobre a prioridade que é dada ao combate à inflação na estratégia macroeconômica e deixou-se claro que a manutenção do nível de emprego e o reaquecimento da atividade industrial eram objetivos inegociáveis. O governo adotou medidas protecionistas e interferiu nas relações entre entes privados.
Mailson não é o único ex-ministro da Fazenda que relata ter ouvido preocupações sobre as afinidades eletivas entre Dilma Rousseff e Cristina Kirchner. "Do ponto de vista político, assim como se passou com o kirchnerismo na Argentina, Dilma deixou de ter maioria entre os formadores de opinião na classe empresarial. Isto desapareceu com a saída de Henrique Meirelles da presidência do Banco Central. Assim como na Argentina, estamos em um modelo econômico que privilegia o consumo sobre o investimento", disse Rubens Ricúpero.
Para Ricúpero, está na convergência de pontos de vista e de interesses a explicação para a "paciência estratégica" exercida pelo governo brasileiro em relação aos crescentes entraves comerciais provocados pela Argentina, a medida em que o país vizinho se torna mais dependente do saldo comercial.
" O Brasil está aceitando a ampliação dos produtos fora da Tarifa Externa Comum alegando que esta é uma exigência argentina dentro do Mercosul, mas o faz docemente constrangido. O governo da Dilma joga a culpa na Cristina em não realizar acordos bilaterais com outros países e blocos, quando a verdade é que o Brasil não tem como negociar coisa alguma com ninguém", disse.
A aproximação entre Dilma e Cristina, como se tratassem de um fenômeno único, pode ser natural em meios brasileiros distantes do governo, mas ainda costuma ser vista com espanto em Buenos Aires, sobretudo entre os adversários do kirchnerismo.
Em outubro do ano passado, empresários reunidos no "Coloquio Idea", um fórum de debates boicotado pelos governistas, lotaram um auditório em Mar del Plata para aplaudir uma palestra de Luiz Inácio Lula da Silva.
O ex-presidente era a principal atração de uma audiência frequentada pela nata do oposicionismo na Argentina. Lula foi apresentado como modelo de bom gestor. O entusiasmo da plateia diminuiu à medida em que o ex-presidente foi recheando seu discurso de referências elogiosas a Cristina e ao boliviano Evo Morales.
A questão institucional é uma das chaves para se responder à pergunta se as águas do Brasil e da Argentina também se misturam fora das cartas hidrográficas. O Brasil não seria kirchnerista mesmo se Cristina Kirchner fosse sua presidente.
"O Brasil não vai virar a Argentina porque o governo brasileiro não tem o mesmo poder sobre a economia e a sociedade que o argentino tem. No Brasil, uma figura como Guillermo Moreno não existiria", sintetizou Mailson.
Mailson citou o secretário de Comércio Interior argentino. Moreno não fala em público, raríssimamente assina atos de ofício e transmite ordens verbais a executivos de empresas, como a de congelar preços por um determinado período. "É por perceberem esta institucionalidade maior é que não existem decisões de desinvestimento no Brasil como existem na Argentina, inclusive envolvendo empresas brasileiras", disse Mailson.
A outra chave para se perceber as diferenças é a dosagem. "A questão do câmbio e a da inflação distancia os dois países ", sentenciou Luiz Carlos Bresser Pereira, também ex-ministro da Fazenda.
Segundo Bresser Pereira, "a Argentina cometeu há quatro anos o erro de usar o câmbio como âncora para conter a inflação, ao invés de ajustar o gasto público. Passou a viver o drama do câmbio paralelo e isto é gravíssimo. No Brasil também há apreciação de câmbio e inflação alta, mas em proporções que impossibilitam qualquer comparação", disse.
De acordo com Bresser, o câmbio desajustado é um fenômeno presente em diversos outros países da América Latina, como Chile, Peru e Colômbia, como decorrência de um fenômeno conhecido na economia como "doença holandesa", em que o grande afluxo de exportações leva a uma desvalorização interna do dólar. "Mas na Argentina é resultado de um combate equivocado à inflação".
Para registro, na Argentina a diferença entre o câmbio oficial e o negro é de 60% e a inflação estimada (o cálculo oficial não é referência) é quatro vezes superior ao IPCA brasileiro.
Bresser está longe de ser um crítico contumaz do kirchnerismo. Chegou a escrever um artigo defendendo a expropriação da petroleira YPF, com o título, "a Argentina está certa". O ex-ministro ressalva que a defesa de um ajuste fiscal não se confunde com um enfoque monetarista sobre a economia. "As presidentes do Brasil e da Argentina são desenvolvimentistas. O desenvolvimentismo pode ou não funcionar, dependendo da competência do governante. O liberalismo, não. Este dá errado sempre".
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