O GLOBO - 04/04
Acusado de racista, homofóbico, sexista e intolerante, tendo ainda declarado que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara teria sido comandada por “Satanás”, o deputado Marco Feliciano prossegue fomentando polêmica, indignação e protestos em todo o país.
Sua eleição para a presidência da Comissão de Direitos Humanos suscita dois relevantes desafios ao estado democrático.
De um lado, coloca em risco uma importante conquista democrática, ao comprometer o destino da Comissão criada em 1995. Se, ao longo do regime ditatorial, a agenda de direitos humanos era uma agenda contra o Estado, com a democratização os direitos humanos convertem-se em condição essencial à consolidação do estado de direito e da democracia. Neste sentido, destaca-se a instituição de Programas, Secretarias e Comissões de Direitos Humanos (nos planos federal, estadual e municipal). Pavimenta-se gradativamente uma institucionalidade democrática marcada pelo alcance transversal dos direitos humanos a impactar políticas públicas e marcos normativos.
É neste contexto que surge a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, com a atribuição de receber e investigar denúncias de violações de direitos; discutir e votar propostas legislativas em direitos humanos; fiscalizar a execução de programas governamentais; colaborar com ONGs; e cuidar de assuntos referentes às minorias. O principal objetivo da Comissão é contribuir para o fortalecimento dos direitos humanos, tendo adquirido credibilidade e autoridade moral como referência na articulação de agentes públicos e sociais na defesa, promoção e educação em direitos humanos, mantendo um diálogo aberto e construtivo com movimentos sociais. Conquistas notáveis foram alçadas nos últimos anos na proteção especial às “minorias”, com o crescente reconhecimento de suas identidades específicas, como exemplificam a Lei “Maria da Penha”, o Estatuto da Igualdade Racial, o Estatuto do Idoso, dentre outros. A atuação do parlamentar Marco Feliciano não poderia mostrar-se mais incompatível com a vocação e o mandato da Comissão que pretende presidir.
Por outro lado, a eleição do pastor Feliciano ainda simboliza o empoderamento de setores religiosos nas instituições públicas. A decisão do Supremo que declarou a constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa científica, em 2008, foi recebida como uma grande derrota por setores religiosos. A reação foi imediata com a apresentação de proposta que objetivava sustar os atos do Supremo que “exorbitassem” de sua competência. Em 2011, soma-se uma nova derrota dos grupos religiosos, com o histórico reconhecimento pelo STF da proteção constitucional às uniões homoafetivas. Adicione-se também a decisão do STF proferida em 2012 admitindo a antecipação terapêutica do parto em caso de anencefalia fetal. A este quadro acrescente-se ainda a posição do Conselho Federal de Medicina a favor da descriminalização do aborto (a ser visto como um problema de saúde pública e não mais como caso de polícia) e os debates em torno da tipificação da homofobia (que importará na responsabilização penal dos atos discriminatórios com base em orientação sexual).
Outra reação imediata de setores religiosos no Parlamento foi a recente proposta de uma emenda à Constituição atribuindo às entidades religiosas a legitimidade para ajuizar ação de inconstitucionalidade perante o STF. Daí o desafio da necessária e desejável separação entre Estado e religião no marco do estado democrático. O princípio do Estado laico proíbe a fusão entre Estado e religião, de modo a proteger a liberdade religiosa. Requer também a atuação positiva do Estado no sentido de assegurar uma arena livre, pluralista e democrática em que toda e qualquer religião mereça igual consideração e respeito. A laicidade estatal demanda tanto a liberdade religiosa como a igualdade no tratamento conferido pelo Estado às mais diversas religiões. Note-se ser o Brasil o maior país católico do mundo em números absolutos. Em 2000, os católicos representavam 74% da população. Em 2009, o universo de católicos correspondia a 68,5% da população brasileira.
Neste cenário, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias torna-se refém de uma eficaz estratégia de poder de grupos religiosos insatisfeitos com extraordinários avanços emancipatórios no campo da cidadania, ameaçando uma importante conquista do estado democrático.
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