O GLOBO - 04/04
A Constituição aprovada em 1988 repôs o Brasil no caminho da normalidade democrática, acabando com dispositivos espalhados em leis despóticas, criadas sob inspiração do regime militar que se impôs ao país por 21 anos. Mesmo com o arejamento institucional, a ele sobreviveram mecanismos coercitivos contrários ao espírito da Carta. Era o chamado “entulho autoritário”, o mais draconiano deles expresso na Lei de Imprensa, um monstrengo da ditadura que só seria exorcizado em abril de 2009, pelo Supremo Tribunal Federal. Mas ainda permanecem na legislação brasileira desvãos que dão abrigo a ações de afronta ao pleno exercício da liberdade de manifestação e de opinião, direito elementar do cidadão nos Estados democráticos.
Caso do artigo 20 do Código Civil, que assegura o direito à privacidade, mas, interpretado em contraposição à Constituição, tem sido um eficiente instrumento de censura. Vítimas preferenciais desse dispositivo são autores de biografias de homens públicos em geral que, pela importância de sua obras, ou da trajetória na vida política ou cultural, não merecem ter a história de vida apagada da memória nacional. Mas é o que têm conseguido, por meio de processos judiciais com base nesse artigo, parentes e herdeiros de biografados.
O pretexto para negar à sociedade o integral direito à informação é tão invariável quanto incompreensível — um suposto zelo pela vida privada de personalidades públicas. Em nome dele, livros como os que retratam trajetórias de personagens como Garrincha, Roberto Carlos e outros sequer chegam às prateleiras, ou seus autores, forçados a obedecer à censura prévia, têm de enfrentar uma via crúcis nos tribunais para garantir o direito que lhes é assegurado constitucionalmente. Uma incoerência. Dessas interpretações peculiares da lei, inexplicavelmente avalizadas por magistrados, em princípio guardiães da Constituição, resultam danos à sociedade e à História do país. Além de ser uma agressão ao estado democrático de direito.
Em boa hora, a Câmara, pela sua Comissão de Constituição e Justiça, age para fechar essa brecha que se transformou em trincheira da censura. A aprovação do projeto que autoriza a divulgação de imagens, escritos e informações biográficas de personalidades públicas, mesmo sem autorização da pessoa ou de parentes, é um passo crucial para acabar com as contradições na legislação, garantindo o pleno exercício de liberdades fundamentais. A proposta, que altera o artigo 20 do Código Civil, foi votado em caráter conclusivo, e só terá de ir ao plenário da Câmara, antes de seguir para o Senado, se for alvo de algum recurso. Espera-se que não o seja.
Derruba-se assim uma barreira que subtraiu da literatura obras fundamentais para a memorabilia nacional. Que o elogiável exemplo da Câmara seja replicado no Senado, em nome da cultura brasileira e como sinal de que a censura tende a ser letra morta no país.
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