O ESTADÃO - 17/04
Nada pior para a democracia do que uma instituição não merecedora de crédito, sobretudo quando composta pelos representantes do povo. É o caso do Congresso Nacional, que começou o ano elegendo para a presidência do Senado Federal e da Câmara dos Deputados dois políticos ao estilo velha raposa, de biografia ruim.
Ficou bem claro nestes primeiros meses do ano que não há nenhum interesse em fazer os brasileiros terem orgulho daquela Casa de leis. Tanto assim que, logo após a combatida eleição dos presidentes do Senado e da Câmara, dois deputados federais condenados pelo mensalão, que tiveram seus direitos políticos cassados, acabaram autorizados a assumir seus cargos - como se fosse possível duas pessoas sem os direitos políticos atuarem na elaboração de leis (é sempre bom perguntar que validade terão as leis por eles aprovadas).
Mas não ficou somente nisso: estando já no plano inclinado, a referida Casa de leis afundou-se ainda mais quando elegeu para presidir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara um deputado radical, embora evangélico, que faz lembrar por sua conduta os grupos fundamentalistas islâmicos. Ele parece estar gostando muito da notoriedade e dos ódios públicos demonstrados contra a sua pessoa.
Não foi tudo: agora, como coroamento dessa escalada rumo à indesejável desmoralização, outro parlamentar de reputação igualmente ruim apresentou projeto que despedaça a Lei da Improbidade Administrativa, instrumento de extrema valia no cerco aos agentes políticos que fazem uso do cargo para enriquecer, avançando no dinheiro público. Pretende-se mutilar essa lei, chamada também lei do colarinho branco.
Acusado de estar agindo em causa própria, o senador Ivo Cassol (PP-RO), na maior caradura, apresentou projeto de lei que sufoca a eficácia da Lei da Improbidade Administrativa. Ele pretende introduzir modificações que reduzem a liberdade dos promotores de Justiça de ajuizar ações que envolvam pessoas suspeitas de avanço no dinheiro público.
Por equívoco ou desconhecimento, esse parlamentar se voltou contra a lei, que é boa, e não contra a conduta dos que se conduzem de forma equivocada na sua aplicação. Realmente, observam-se em muitas comarcas iniciativas de promotores de Justiça que causam a impressão de estarem vinculados a interesses políticos ou inimizades pessoais. Isso não deveria ocorrer.
A política partidária nos municípios é sempre muito explosiva e tende a dividir as opiniões. Não é desejável que isso aconteça, mas muitas vezes o promotor público causa a impressão de estar mesmo envolvido com um dos grupos e por isso as ações de improbidade administrativa por ele propostas parecem ser de encomenda, desmerecendo o sentido da lei.
Também os juízes nem sempre adotam o comportamento adequado no sentido de evitar o uso da lei para atendimento de interesses contrariados. De fato, a Lei de Improbidade Administrativa exige que após a propositura da ação o requerido seja intimado para oferecer explicações no prazo de dez dias. Após essa resposta, em juízo de admissibilidade da ação, o magistrado decide se a recebe ou não. Muitas vezes essas ações têm a clara feição de fruto de interesses políticos contrariados, mas mesmo assim são recebidas e processadas pelos juízes, sendo posteriormente julgadas improcedentes.
Essa conduta, que não é a melhor, faz com que realmente cerca de 80% das ações por improbidade administrativa resultem em nada - e nisso se apega o senador Ivo Cassol para tentar desfigurar a lei. Ele pretende que os promotores públicos, quando ingressarem com ações equivocadas, sejam condenados ao pagamento das despesas forçadas sofridas pelos acusados.
Não há nenhuma virtude em lutar para modificar uma lei que traduz princípios adotados desde a nossa primeira Carta Magna. Realmente, já na Constituição do Império de 1824, que dispunha sobre o caráter sagrado e inviolável do imperador, se previu claramente no artigo 133 a responsabilização dos ministros "por peita, suborno ou concussão" e "pela falta de observância da Lei".
A responsabilização dos ministros, admitida desde aquela época, foi repetida nas Constituições posteriores e dá sentido às disposições da Lei de Improbidade Administrativa atual, que disciplina os casos de improbidade e busca impedir condutas que levem a auferir vantagem patrimonial indevida em razão do exercício do cargo, mandato, função, emprego ou atividades administrativas.
A Constituição de 1988, a propósito, em seu artigo 14, parágrafo 9.º, reservou para lei complementar, a ser aprovada pelo Congresso Nacional, as normas disciplinando as ações em casos de improbidade administrativa. Isso veio a ser feito em 1992 e desde então a lei vem sendo aplicada com êxito e, em muitíssimos casos, impede que agentes públicos desonestos permaneçam em cargos públicos, além de serem condenados à devolução dos dinheiros que acumularam ilicitamente.
A exigência de moralidade para o exercício do cargo, a legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direita ou indireta são valores de extrema relevância que a Lei de Improbidade procura resguardar. Seria um absurdo esquartejar a lei por falhas na sua aplicação, decorrentes de condutas inadequadas, e não de disposições nela contidas.
O projeto do senador Cassol - já acusado, repita-se, de estar agindo em causa própria - merece aguardar sem pressa nas gavetas do Congresso Nacional por muitos e muitos anos. Seria uma violência contra o País convertê-lo em nova lei de improbidade, que teria, talvez, a cara de quem mereceria estar punido por ela.
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