O GLOBO - 16/03
Dois serventes conversavam com uma caixa. Um deles argumentava que o Brasil já tinha a Copa e as Olimpíadas.— Ainda ia querer levar o Papa? Aí é fácil.
Preparei-me com roupa decente e bons chinelos para assistir em casa, diante de um monitor de 52 polegadas, ao anúncio e à aparição do novo Papa. É grande a curiosidade de um judeu em relação aos papas, mesmo um não religioso tendendo ao agnosticismo, como é meu caso. Desde que o bom e pacífico João XXIII, no Concílio II, derrubou a tese do deicídio, e que João Paulo II chamou os judeus de “irmãos mais velhos” e fez expressão de Moisés olhando para Canaã na televisão, o interesse na comunidade só deve ter aumentado.
Claro que não houve judeu que não desse uma tremida quando Joseph Ratzinger subiu ao trono. O grande teólogo alemão acabou atacando não os judeus, mas o Islã, ao proferir uma frase a ser esquecida, parcial e intelectualmente incompleta, que deveria gerar repulsa em qualquer humanista, seja ele judeu, muçulmano, cristão, ateu, paulista ou argentino.
Como carioca, brasileiro, cidadão do país com maior número de católicos do mundo, estava também ansioso para saber se teríamos Dom Odilo Scherer no Vaticano. Não torcia especialmente por ele, temeroso de um papado continuísta e ultraconservador, mas sabia que algo aqui pelo Sul estava reservado, e desconfiava, mesmo sem grandes argumentos, de que isso seria bom.
Minha faxineira, que é evangélica bem sectária, não moveu um músculo da face com a agitação na pequena sala de estar, com a TV, as polifonias, o suspense dos apresentadores. A coisa, simplesmente, não era com ela. Preferi respeitar e observar antropologicamente se ao longo do anúncio a coisa mudaria.
E veio o Papa. Gostei do jeitão e do sorriso meio oblíquo. O fato de ter começado por um “boa noite” bem mundano, ao olhar para a multidão na praça, Roma ao anoitecer, trouxe uma vibração secular, urbana, de um homem que quer conversar com pessoas na Terra e que, até prova em contrário, não pode prometer o “divino já”, como fazem hoje tantos sacerdotes.
Em poucos segundos, soube que era argentino e que cozinhava a própria comida. Não pude deixar de indagar mentalmente: o que será? Um arroz com vagem, um omelete, um bife portenho, uma sopa de tomate? Gosta de vinho? Prefere as uvas da terrinha, tão na moda, bombadas na madeira, ou vai num tempranillo amadurecido?
Como não podia deixar de ser nesses momentos de concentração mundial, meu pai ligou para dar seu parecer. O velho judeu tinha chegado rápido a importantes conclusões, sempre um pouquinho para além daquilo que se informava.
— É um grande homem. Come na marmita com os operários, pega ônibus todo dia, vai moralizar o Mundo.
Aconselhei prudência e desliguei para poder ouvir as palavras de Francisco. Comecei também a navegar. Boatos inflados traziam até autoria de sequestros durante a ditadura. A posição quanto ao casamento gay era das mais azedas, sobretudo na expressão: trazia a imagem do demônio para dar uma força no contramarketing. Por outro lado, ter-se indisposto com a dinastia Kirchner, não importa muito o motivo, pesou positivamente nos meus quesitos.
À medida que o Papa ia ganhando a cena, minha excelente faxineira evangélica ficava mais absorta no trabalho: limpava os vidros da varanda do quarto com uma energia maior que a habitual, como se quisesse expressar, no atrito da flanela com o vidro, certa oposição ao roçar das vestimentas papais com as cortinas de veludo que, a partir de quarta-feira, fazem parte de sua rotina, por mais identificado que ele seja com as causas sociais: a Igreja de Roma não é das mais avessas ao dinheiro, e tirar-lhe este peso é tarefa epopeica.
Pelo que sabemos, esse Francisco nunca bebeu na esquerda mas tem um forte trabalho pastoral junto aos homens sem posses. Usa com frequência o termo “escravidão” para referir-se às dinâmicas das ruas, o que é um sinal de (boa) consciência: qualquer ser lúcido sabe que algum grau de escravidão ainda rege as relações de troca humanas, muitas vezes as mais lícitas.
Se foi fã colaboracionista dos milicos ou não foi, ele nega. Vai-se lá saber: tem tanto fã de gente ruim por aí que ocupa os tronos mais ilibados que essa é uma questão probabilística sempre muito forte quando alguém é alçado a um novo posto. Mas, aparentemente, esse apetite social do novo Papa traz à memória algo que parecia vibrar no sorriso de Albino Luciani, o João Paulo I, que veio a falecer um mês após sua escolha, deixando rumores terríveis no ar.
Rumores logo superados pela forte presença de Karol Wotjyla, com sua voz de ator, seu ouvido absoluto (cantou o João de Deus com os brasileiros murmurando uma terça abaixo de rara precisão e ataque). A doença acabou obscurecendo boa parte do pontificado daquele homem impressionante que, contudo, jamais avançou de fato para além da função que teve nas transformações que ocorriam à época, início da derrocada comunista.
A volta de um Papa com carisma, com voz, com emoção, parece ser uma boa notícia para o mundo, seja o mundo das crenças e dos dogmas, seja o mundo mais próximo à razão e ao livre pensar, seja o enclave entre o cientificismo e o criacionismo: é uma voz que fala para muitos, e o que quer que diga pode influenciar aquilo que convencionamos chamar de civilização mais numa direção ou em outra, sobretudo quando a paz é ameaçada.
Despedi-me de minha faxineira sem uma palavra sobre o assunto e fui ao supermercado. Dois serventes conversavam com uma caixa. Um deles argumentava que o Brasil já tinha a Copa e as Olimpíadas.
— Ainda ia querer levar o Papa? Aí é fácil.
Bom argumento, considerando-se que até a Deus se atribui nacionalidade.
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