O Estado de S.Paulo - 30/03
Durante uma brincadeira, uma instável menina de 5 anos beija levemente os lábios de seu professor, a quem entrega um bilhete amoroso. Com delicadeza e sensibilidade, ele tenta reendereçar suas declarações de amor a quem julga de direito, ou seja, o pai ou um menino de sua idade. Ressentida por entender essa resposta como rejeição, a menina faz uma indevida acusação contra o professor para a diretora da escola, que a toma como evidência de abuso sexual e aciona a engrenagem social que ciosamente se posiciona para punir o "pedófilo". Embora precipitada e mal conduzida, a atitude da diretora parece justificável. Afinal os pedófilos existem e se concentram exatamente nas atividades que favorecem o contato com as crianças, haja vista o grande escândalo dos padres pedófilos que continua a abalar o Vaticano.
É esse o enredo do excelente A Caça, de Vinterberg, do saudoso grupo dinamarquês Dogma 95. Seu mérito maior é mostrar como é quase impossível lidar de forma objetiva com a pedofilia, tão assustadora ela se nos apresenta. No afã de punir imediatamente o acusado de crime tão abominável, os juízes terminam por praticar crimes tão graves quanto aquele que pretendiam julgar.
O filme mostra a complexidade da situação que se esconde atrás da ensandecida caça às bruxas que nestas ocasiões costuma ser empreendida, como bem ilustra o episódio Escola Base, ocorrida entre nós há cerca de 20 anos.
O ângulo escolhido por Vinterberg para abordar o problema é bem instigante. Em vez de focar a evidente patologia de um pedófilo, com os graves problemas que provoca em suas vítimas e em si mesmo, como fez em seu filme de 1998, Festa de Família, seu olhar incide agora sobre uma região mais nebulosa, na qual a patologia é mais difusa e difícil de diagnosticar, aquela que se esconde numa suposta normalidade que cria um pedófilo imaginário para nele projetar suas próprias fantasias e desejos reprimidos.
Em assim fazendo, Vinterberg mostra como é incerta a linha de demarcação entre normalidade e patologia.
É verdade que a figura do professor tem uma certa ambiguidade. Sua mulher, de quem está separado e que se recusa a lhe dar a guarda compartilhada do filho adolescente, o acusa de não ter um emprego decente, pois, com mais de 40 anos, ainda trabalha numa escola maternal. Ou seja, ele não corresponde bem às expectativas que a sociedade estabelece para as pessoas de seu sexo e de sua idade.
Talvez essa sua condição facilite a escolha de sua pessoa como alvo das fantasias provenientes de várias fontes da comunidade. Fantasias eróticas da menina, que está às voltas com um complexo de Édipo instalado numa família conflituada pelas frequentes brigas dos pais, o que a leva a fugir de casa com frequência. Além disso, é precocemente exposta à crueza do sexo, desde que o irmão adolescente lhe mostra imagens pornográficas. Fantasias homoeróticas e agressivas dos amigos. Fantasias das fanadas professoras incapazes de articular o desejo em relação ao atraente colega, único homem com quem convivem na escola, incapacidade não compartilhada pela humilde atendente que o seduz, uma imigrante de origem árabe perdida no remoto reino da Dinamarca, onde, de longa data, Shakespeare dizia haver algo de podre.
No que diz respeito às crianças, o filme mostra corretamente que elas não devem ser idealizadas, como o narcisismo dos pais costuma fazer. Ao descrever a sexualidade infantil Freud provocou grande espanto, pois até então se confundia sexualidade e genitalidade, o que levava à errônea conclusão de que a sexualidade não existia na infância e só aparecia com o advento da puberdade e adolescência.
Se até Freud todas as manifestações da sexualidade infantil foram sistematicamente negadas, o mesmo aconteceu, e talvez de forma ainda mais intensa, com a agressividade das crianças. Prova disso é o bullying, comportamento desde sempre presente nas salas de aulas e cuja dimensão destrutiva e violenta só muito recentemente foi devidamente reconhecida, possibilitando a criação de medidas adequadas para combatê-lo.
As crianças não são anjos nem demônios, são apenas frágeis seres humanos em formação, com suas pulsões agressivas e sexuais desabrochando e, por isso mesmo, necessitadas de proteção e orientação por parte dos adultos, que supostamente já teriam aprendido a lidar com essas mesmas pulsões, o que, infelizmente, nem sempre é verdade. O fato de nos tornarmos adultos e envelhecermos não nos garante a maturidade emocional e afetiva. Nosso lado infantil continuará sempre conosco e muitas vezes tomará indevidamente o controle de nossa vida mental, provocando transtornos e dificuldades.
Assim como deixa imprecisos os limites entre normalidade e patologia, Vinterberg mostra como é tênue a linha divisória entre a vida adulta e a infância. No momento em que o filho do professor cumpre com os ritos de iniciação da sociedade de caçadores, é cantada uma canção que afirma ser aquele o momento em que o menino vira homem e os homens viram meninos.
A cena é decisiva porque ressalta a incongruência que efetivamente existe entre o tempo cronológico da realidade material externa e a atemporalidade do inconsciente, o que faz com que os homens (os adultos) estejam sempre voltando a ser crianças, ou seja, a manter a irracionalidade regida pela afetividade mais arcaica.
Mais ainda, ela é particularmente marcante na medida em que evidencia a presença da destrutividade, manifestação inequívoca da pulsão de morte. A caça, esporte masculino por excelência, é uma evidência do prazer de matar. A pulsão de morte está presente desde os primórdios da vida, mas naquele momento o desejo de matar obtém uma sanção simbólica ritualizada, fruto de uma sublimação que mal esconde os fundamentos sobre os quais se assenta.
É pleno de significação que o menino (a criança) se transforme em homem (o adulto) quando pode expressar civilizadamente o desejo de matar. Mas, não nos esqueçamos, os homens podem voltar a ser meninos e, regidos pelos mais primitivos impulsos, podem regredir à barbárie e fazer a guerra.
O desejo de matar o próximo se dá não só através de sua eliminação física, mas também indiretamente pela a difamação, a rejeição, a exclusão do convívio social. Vemos no filme que, afastada a racionalização que até certo ponto explicaria o ódio e o desejo de destruir o professor (o suposto abuso sexual), persiste a hostilidade, pois ela se sustenta em outros inconfessados motivos (o amor reprimido, a competição, a rivalidade).
Vinterberg nos mostra como sexualidade e destrutividade, por não se deixarem domar por inteiro, são forças que não cessam de nos desafiar.
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