quarta-feira, fevereiro 27, 2013

Efeitos da canícula - ARTUR XEXÉO

O GLOBO - 27/02

José Dirceu aceita o combate à corrupção. Mas só se for a corrupção posterior a 4 de junho de 2010, quando o presidente da República sancionou a Lei da Ficha Limpa



Correm rumores de que uma frente fria está se aproximando. Dizem que haverá um aumento de nuvens. Que há até a possibilidade de pancadas de chuva a partir do fim da tarde desta quarta-feira. Que essa sensação de que o dia está muito abafado vai acabar. Quem não derreter até lá verá.

Temo os efeitos colaterais da chuva. Deslizamentos de terra, bueiros entupidos, enchentes... Mas essa calidez, essa quentura, esse queimarço, enfim, esse calor não pode continuar. E ele tem suas consequências também. Outro dia mesmo, li uma entrevista do novo presidente do Tribunal Superior do Trabalho, Carlos Alberto Reis de Paula. Não sei quantos graus fazia por ocasião da entrevista. Tanta coisa para dizer, e eis o que ele declarou: "Eu ganho pouco mais de R$ 15 mil líquidos. Se falarem que é muito, eu digo: pode ser para vocês que ganham salário mínimo, mas, para o que eu faço e pela minha importância, acho pouco.”

Agora, me explica, qual é a importância do juiz De Paula? Ele é mais importante que um professor? É mais importante que um médico? Não nego que juízes, professores e médicos deveriam ter um salário bem maior que os que o Brasil oferece. Jornalistas também. Mas, sei lá, com as condições da educação e da saúde no país, faz algum sentido um profissional que recebe mais de R$ 15 mil líquidos reclamar da vida? Só há uma explicação para a desastrada declaração do magistrado: o calor. Chuvas provocam enchentes. É ruim. Mas o calor, pelo visto, resulta em declarações impensadas. É ruim também. Muito ruim. O sujeito é acometido de uma tontura, de um suor incontrolável, de uma sensação de mal-estar, fica com o pensamento turvo e, no fim das contas, fala besteira.

Olha só o Zé Dirceu, por exemplo. Dia desses, para uma plateia de militantes petistas em Cha-pecó, em Santa Catarina, ele reclamou de um dos mais nítidos avanços da legislação política brasileira. Eu sei que, quase sempre, Zé Dirceu não diz coisa com coisa. Mas desta vez foi demais. Olha só: "Criaram a Lei da Ficha Limpa, que é uma lei completamente absurda. Porque ela retroagiu.”

Em outras palavras, o ex-ministro aceita o combate à corrupção. Mas só se for a corrupção posterior a 4 de junho de 2010, quando o presidente da República sancionou a Lei da Ficha Limpa. Corrupção cometida há mais de três anos tá liberada. Tem alguma explicação para tal estapafurdismo? Tem, sim. O calor! E olha que a frente fria que supostamente está chegando aqui hoje vem do Sul e já passou por Santa Catarina.

Só o calor também justifica o que anda dizendo o advogado da Gaviões da Fiel, Ricardo Cabral. No começo desta semana, logo após o depoimento na polícia do jovem que se responsabilizou por ter acionado o sinalizador náutico que matou um adolescente em um jogo do Corinthians na Bolívia, ele tentou explicar como a torcida organizada é justa e que o suposto crime do garoto não ficará impune: "O menor vai receber uma punição da Gaviões da Fiel porque ele levou os artefatos sem o consentimento da direção da torcida.”


Vem cá, o rapaz confessa um homicídio culposo, fica em dívida com a Justiça boliviana, e seu advogado o tranquiliza garantindo que ele será punido pela Gaviões da Fiel? Tô dizendo: é o calor!

Na transmissão da entrega do Oscar pelo TNT, o crítico Rubens Ewald, ao comentar o prêmio de melhor atriz coadjuvante recebido por Anne Hathaway, disse que ela deveria agradecer a Susan Boyle por ter popularizado a canção ("I dreamed a dream") que interpreta no filme. Muita gente diz que Anne ganhou o Oscar só pela cena em que canta a tal música. Pode ser. Mas daí a dever alguma coisa a Susan Boyle já é exagero. Conheço gente que mudou de canal ou desligou a tecla SAP quando Rubens fez esse comentário. Não precisava tanto. O crítico está desculpado: foi o calor. No caso, um calor de desmanchar maquiagem.

Mais um exemplo? Como todo mundo sabe, Morena fugiu da máfia que trafica mulheres e está escondida numa caverna na Capadócia. Até aí, tudo verossímil. A coisa só se complica quando Morena sai da tal caverna. O cabelo, lisinho como se tivesse acabado de passar pelo salão da Monalisa de "Avenida Brasil’,’ fica todo encaracolado quando a personagem aproveita a liberdade pelos campos da Capadócia. Como é que Gloria Perez deixa isso acontecer? Não precisa responder: é o calor.

Enquanto escrevo, os termômetros registram 38 graus. Nem imagino qual seja a sensação térmica. Também não quero imaginar. Prefiro a ignorância climática. Aguardo com ansiedade a chegada da frente fria prometida para logo mais. Que ela seja leve, mas refrescante. E, se algum leitor reclamar da coluna de hoje, já tenho a explicação na ponta da língua: foi o calor!

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