O GLOBO - 13/01
Acho que Ang Lee foi levado a fazer o filme de Pi por causa do desafio de pôr em cena a experiência de um menino sozinho com um tigre no meio do oceano. Essa ideia chegou a Yann Martel, o autor do livro em que o filme se baseia, através de “Max e os felinos”, romance de Moacyr Scliar, em que um menino judeu, sobrevivente de um naufrágio na fuga da Alemanha nazista para o Brasil, se vê num bote acompanhado de um jaguar. Martel tinha 36 anos quando aprendeu a história. Depois de ter dito que estava à espera de uma história com H maiúsculo para escrever um livro, deparou-se com o argumento de Scliar.
Apesar de tudo resultar bem, com o escritor gaúcho sem ânimo de abrir um processo por plágio, Martel aparece mal na fita quando diz ter lido apenas uma resenha escrita por John Updike (que depois disse nunca ter resenhado o livro de Scliar), mas sobretudo quando disse tratar-se de “uma grande ideia tratada por um escritor menor”. Scliar pode ser visto no YouTube comentando o caso, muito desencanado. Martel terminou escrevendo um agradecimento nominal a Scliar “por uma faísca de vida”. “Não sou litigioso”, diz Scliar. E soa muito bem. Mas ele se ressente, como eu, de que a declaração de Martel sobre “escritor menor”, tendo dito que não leu o livro mas apenas a resenha, trai um preconceito contra a possibilidade de um livro brasileiro ser relevante. Em suma, o filme de Ang Lee é que faz brilhar a história dessa história.
Delfim Netto é uma das mentes mais brilhantes da República. Ele aparece na letra de uma música que fiz (“Ele me deu um beijo na boca”). Nessa música, seu nome precede (e rima com) a frase “Política é o fim”. Eu o vi pessoalmente uma única vez, num voo doméstico (houve oportunidade apenas para um cumprimento com sorriso bom da parte dele). Quando eu estava no exílio, ele era uma das figuras mais odiadas pela esquerda. Eu aderia, sem comentários (sou exuberantemente ignorante em economia): afinal ele tinha assinado o AI-5. Acompanhei, com ignorância ainda notável, sua desaprovação das políticas econômicas de FH. Imaginei a antipatia natural entre um charmoso acadêmico de esquerda e um charmoso acadêmico de direita. Não é assim que, eleito Lula, ele foi virando um petista/lulista/dilmista entusiasta. O artigo da “Folha” em que ele apoia Dilma contra “The Economist” já era bem partidário (a desconfiança dos investidores ficava ali parecendo suspeitamente artificial), mas o texto que li na “Carta Capital” (revista que uma vez apelidei de “a ‘Veja’ do Lula”) chega a parecer uma ode. Tudo isso deve ser bom sinal. O Brasil está virando adulto. Mas para um velho como eu, não deixa de soar engraçado Delfim Netto com forte sotaque “compañero”, escrevendo “presidenta” e tudo o mais. Cheguei a pensar que fosse o Paulo Henrique Amorim (cuja conversão tampouco poderia passar em brancas nuvens — para não falar no Mino Carta).
“As Mulheres de Péricles” é um disco importante. O DJ Zé Pedro teve a ideia de fazer um disco com cantoras jovens interpretando canções de Péricles Cavalcanti e pediu a Nina, filha dele, que fizesse a curadoria. Poderia ser algo simpático e nada mais. Mas o resultado é que a inspiração peculiar de Péricles atraiu as capacidades mais intensas e profundas das moças, revelando a força da nova geração paulista (embora não só paulista) de um modo que nenhuma matéria da “Folha” tinha conseguido sugerir. Eu poderia falar horas sobre Céu e seu som na abertura do álbum. Também teria muito o que dizer sobre Marietta Vital e Mariah Rocha, sobre todas as participantes, enfim. Mas, por enquanto, basta que eu me concentre um minuto no trabalho que Mallu Magalhães fez com “Elegia”. O sumiço do bordão no trecho exato da música, os esconderijos que a voz busca (por timidez, por adivinhação erótica, por consciência das sutilezas da expressão artística), tudo nessa faixa faz pensar na riqueza que está aí no ar, na força que antes desse disco era tão mais difícil de ver. Que, para isso, Mallu tenha ido para o extremo oposto do projeto de clareza complicada que é a tradução de Augusto de Campos para o poema de John Donne, só reforça a sensação de que Mallu chegou longe. E com isso, provou o que se percebe em cada faixa desse disco: que essas meninas não são de brincadeira. Só mesmo a música de Péricles para aglutinar esse elenco de criadoras generosas (não se sente o ranço de ego feminino que fácil surge entre possíveis divas). Péricles, o eterno adolescente que, vezes sem conta, tem salvado o legado dos anos 1960.
Mas São Paulo está de luto. Laércio Grimas, 33, o DJ Lah, do grupo Conexão do Morro, foi morto, entre sete outras vítimas, por um grupo de encapuzados.
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