domingo, dezembro 02, 2012

Lincoln de Spielberg - LEE SIEGEL


O Estado de S.Paulo - 02/12


Ainda não vi Lincoln, o novo filme de Steven Spielberg, e não quero perdê-lo. Por maiores que sejam suas deficiências intelectuais, Spielberg sabe como contar uma história. E quanto a Daniel Day-Lewis, que faz o papel do lendário presidente, eu pagaria até para vê-lo lendo uma lista telefônica. Mas minha opinião sobre o culto a Lincoln, que o filme só fará crescer, é bem diferente. Para se ter noção de como Lincoln é reverenciado nos EUA, sobretudo entre os intelectuais, basta assistir a um trailer do filme de Spielberg. Ouve-se, do começo ao fim, música sacra, que se eleva a uma intensidade transcendental. É o tipo de música de fundo presente em qualquer filme, de ficção ou documentário, sobre Lincoln ou sobre a Guerra Civil.

Não é difícil compreender por que Lincoln foi alçado a um plano reservado aos santos, ou mesmo às deidades que inspiram um assombro reverente. Foi ele quem removeu do solo americano a mais trágica e imperdoável nódoa da história humana: a escravidão. E, tendo eliminado a escravidão da relativamente jovem república americana, Lincoln iniciou a longa e custosa marcha rumo à igualdade para os negros nos EUA. Basta pensar em Lincoln e logo nos vem um nó na garganta, as lágrimas brotando nos olhos. O fato de que ele tenha lutado contra a depressão a vida inteira, e que tenha sido assassinado aos 56 anos, só contribui para aumentar a aura de pathos heroico que o circunda.

Qualquer crítica a Lincoln é imediatamente rechaçada, e seu destino trágico e suas realizações históricas são de pronto invocados em sua defesa. Uma reação negativa a Lincoln também corre o risco de ser associada à longa tradição de ódio a Lincoln, ainda vigente em grupos arianos e outras variedades de racismo ideologicamente comprometido. No entanto, o que sempre me incomoda quando há um revival de Lincoln é essa dimensão sagrada que as pessoas lhe dão. O fato inescapável é que Lincoln travou com entusiasmo uma guerra atroz, e talvez desnecessária. Segundo a fenomenal obra de historiografia This Republic of Suffering (Esta República de Sofrimento), a Guerra Civil custou a vida de mais soldados americanos - 620 mil - do que todas as outras guerras de que os EUA participaram até a Guerra do Vietnã, da Guerra de Independência à 2.ª Guerra.

Seiscentos e vinte mil mortos - e aí não está incluído o número de civis mortos, que os historiadores calculam ter sido de no mínimo 50 mil, e talvez foi mais que isso. Toda essa destruição de vidas humanas aconteceu entre 1861 e 1865, ou seja, há apenas duas gerações. Poucas pessoas se dão conta de que a Guerra Civil deixou uma cicatriz permanente na psique americana. A violência dos EUA e seu pendor para a violência têm origem na Guerra Civil. Assim como a divisão entre a chamada América "vermelha" e "azul".

This Republic of Suffering foi escrito por Drew Gilpin Faust, que atualmente é presidente de Harvard. O livro é uma crônica extraordinária, elaborada a partir de todos os ângulos, dos efeitos desse tipo de carnificina para a alma e a psique de uma sociedade. Também formidável é uma das conclusões que Faust tira do conflito. A liberdade que a abolição promovida por Lincoln parecia ter conquistado era, no fim das contas, elusiva. Faust diz que "num país que não se dispunha a garantir a igualdade de direitos sobre a qual uma verdadeira liberdade tem de repousar, o ideal de uma sociedade formada por homens livres permaneceu irrealizado. Os brancos do Norte e do Sul se uniram em suas pretensões de hierarquia racial, relegando o legado abolicionista a um abandono de 100 anos".

Faust diz ainda que "a morte, em si, tornou-se a finalidade da guerra, o produto de seu maquinário industrializado; não se observavam mais propósitos transcendentes ou gloriosos; finda a batalha, nortistas e sulistas jaziam misturados, 'fama ou país, é o que a eles menos importa'". Essa última citação foi extraída de um poema de Herman Melville, que a historiadora cita mais uma vez: "Para abrir os olhos, como bala não há". Os homens massacrados e seus entes queridos não aprovariam a música de fundo celestial que hoje acompanha as invocações da guerra de Lincoln.

Intelectuais e artistas contemporâneos - incluindo, ao que parece, Spielberg - ainda não abriram os olhos. Para eles, todo o sofrimento e a angústia causados pela Guerra Civil foram uma "carnificina transcendental", para citar um acadêmico americano que, por sua vez, estava sendo citado pelo New York Times. Lincoln é celebrado como herói imaculado porque mandou centenas de milhares de homens para morrer e assassinar outros tantos homens.

Mas é de se indagar se a Guerra Civil tinha mesmo de ser travada. O Norte era rico e o Sul, pobre. Uma economia agrícola baseada no trabalho escravo estava condenada ao fracasso. Com o envelhecimento e as fugas da população escrava, a instituição da escravidão acabaria se extinguindo por conta própria. E o Norte tinha armas econômicas à sua disposição, até o boicote a bens produzidos no Sul. Será que isso causaria a morte de 700 mil escravos? Parece improvável, ainda mais considerando que nesse meio tempo o Norte poderia ter ampliado as tentativas de libertar escravos por meio de vários tipos de subterfúgio.

Lincoln, que, segundo alguns relatos, em certas ocasiões ria de maneira bastante amalucada, partiu para o conflito movido por um fanatismo farisaico. Ao falar sobre a guerra em seu segundo discurso de posse, proferiu as seguintes palavras cruéis, implacáveis: "Se Deus deseja que ela continue (...) até que cada gota de sangue extraída com o chicote seja retribuída por outra arrancada com a espada, como se disse há 3 mil anos, ainda hoje se deve dizer: 'os juízos do Senhor são verdadeiros e todos igualmente justos'". Há algo de psicologicamente desequilibrado em tal manifestação. Ao escrever uma carta de condolências a uma mãe que perdera cinco filhos na guerra, Lincoln se referiu ao "orgulho solene que a senhora deve sentir por ter posto sacrifício tão custoso no altar da Liberdade". O "orgulho solene" que ela deveria sentir depois de ter perdido cinco filhos! A frase é santimonial e revoltante. Como disse Melville: fama ou país, era o que menos importava a essa mulher.

Não estou dizendo que Lincoln não foi um grande presidente, alguém que liderou o país em anos tenebrosos. Mas era, como qualquer presidente, um homem mortal e, portanto, limitado, que cometeu equívocos, um dos quais pode muito bem ter custado a vida de quase 1 milhão de pessoas, quando uma oposição mais pacífica ao Sul era possível. Eu gostaria, pelo bem de um futuro decente, que os admiradores que ele tem nos EUA fossem mais moderados em sua admiração, e mais humanos.

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