sexta-feira, dezembro 14, 2012
Encontros não marcados - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
O Estado de S.Paulo - 14/12
Estava na sala de espera do consultório, pouco depois de ter assistido a uma edição do SPTV, em que o Cesar Tralli, um bom repórter, foi enganado pelo texto do teleprompter. Só pode ser isso, porque afirmou: "Os Sertões, um romance de Euclides da Cunha". Poderia ser um romance, não é. Nunca foi. Romance é A Guerra do Fim do Mundo, de Vargas Llosa, que usou o mesmo tema e o mesmo livro para reescrever a guerra de Canudos. A menos que nas faculdades, nas última semanas, tenham sido mudados os gêneros literários.
A vida traça caminhos curiosos, é um clichê que me persegue. Pois estava ali para uma entrevista médica em virtude de um novo plano de saúde. Entrei no consultório na Avenida Faria Lima apreensivo. Testes e exames me deixam ansioso. Havia um mundo de gente à espera.
Abriu-se a porta do consultório, um senhor saiu e se aproximou:
- Sem querer perturbar, posso cumprimentá-lo? Sou seu leitor a cada duas semanas.
Estendi a mão. Confesso que gosto disso, é quando conhecemos quem nos lê, uma vez que leitores são faces anônimas. E ele:
- Já nos encontramos uma vez.
- Sim? Quando?
- No Líbano, em 1963.
- Minha nossa, lá se vão 49 anos. No Líbano?
- Em Beirute, você estava no Hotel Fenícia.
Nos letreiros estava escrito Phoenicia. Então, ele realmente tinha me visto lá. Como ia saber em que hotel me hospedei com a equipe da Rhodia, comandada pelo Lívio Rangan, o pioneiro de tudo o que há hoje em eventos de moda no Brasil, inclusive o São Paulo Fashion Show. Eu tinha 27 anos, morava em Roma por aventura. Fernando de Barros, que estava por lá com uma equipe de cinema, me colocou na caravana de moda, me contratando para fazer o texto de um documentário. Esse texto foi feito a quatro mãos com Jô Soares, ele se encarregou das graças, éramos companheiros de jornal.
Aquele senhor, Roberto Nicola Jeha, falou das manequins (naquele tempo ainda não se dizia modelos) e da banda do Sérgio Mendes. Lívio produzia um show incrível, colorido, agitado, vendeu bem nossa moda.
O senhor era magro, tinha cabelos negros.
Também tinha 27 anos... Hotel Fenícia. Sofisticadérrimo. Como faziam sucesso na piscina e na passarela modelos estrelíssimas, como Mila Moreira (hoje atriz da Globo), Lucía (o acento era no í) Curia, depois braço direito de Coco Chanel, falecida há poucos anos, viúva de Walter Moreira Salles, Darcy (também já partiu), Lilian, Mailu, Paula Peixoto.
- O Hotel Fenícia foi destruído na Guerra do Líbano de 1982. Reconstruíram acho que em 2000.
Era lindo o Líbano. Fomos a Biblos e a Baalbek. Hoje moro em um edifício chamado Biblos e há anos procuro fotos daquela cidade, para emoldurar no hall entrada. E não consigo. Tentei até o consulado, nada. Biblos, ou seja, a Fenícia, foi o grande porto da Antiguidade. Baalbek, celeiro do império romano, tem ruínas grandiosas. Roberto e eu trocamos mais umas palavras, fui chamado.
Incrível. No meio de uma tarde abafada, meio século depois, dou com uma pessoa que esteve à minha frente, guardou meu rosto, me acompanhou pelos livros e jornais. Há algo misterioso nesses reencontros. Dedo do destino ou de uma entidade? Como saber?
Por essa razão, entrei no consultório do médico Francisco Napoli tranquilo. Passaria ou não pela bateria de perguntas? Teria um seguro? Estava entregue... ao destino. E eis que o doutor Francisco, ou melhor, Kiko, como ele prefere ser chamado, me disse:
- Te conheço dos tempos da Atlética Osvaldo Cruz nos anos 80.
- Do Caoc?
- Nós, estudantes de Medicina, chamávamos de Atlética, porque era o clube. Caoc, como vocês chamavam, era, e é, o Centro Acadêmico. Você estava sempre na piscina e no bar.
Verdade. Jornalistas ali se reuniam aos sábados e domingos. Edmar Pereira, do Jornal da Tarde, um belíssimo texto, Sergio Leopoldo (também poeta, onde estará?), Lyginha Sanchez, da Folha, a psicóloga Ignez, de lindas pernas, as atrizes Ileana Kwasinski e Regina Braga, a escritora Maria Adelaide Amaral. Era chope e cerveja até o meio da tarde, depois, partíamos em busca de restaurantes descolados. No centro, no Hotel Normandie, havia um ótimo filé com ostras. Pouca gente conhece essa "preciosidade" que é a Atlética. Uma reserva florestal atrás do Hospital das Clínicas, com piscina, quadras, campo de futebol, bosque com trilha para os caminhantes. Maria Lenk, mito da natação brasileira, treinava ali.
- Digo que estive mais no bar do que na piscina. Nosso grupo ia olhar, bater papo, dissolver o tédio das manhãs de sábado. Antes que o chope (ou as cervejas) subisse, eram altas conversas, principalmente sobre cinema.
- Frequentávamos grupos separados, mas todos se conheciam ao menos de nome. Ainda vai à Atlética?
- Não, fui mudando, morei na Alemanha, voltei, estava sempre longe. Agora, passaram-se 30 anos. E esta é uma tarde de reencontros. Agora, por incrível que pareça, estou em Pinheiros, a quatro quadras do Caoc. Basta subir a Rua Artur Azevedo. E nunca mais frequentei, foi toda uma época.
Por um momento ouvi o barulho de pessoas se atirando na água, vi o chopinho gelado, os estudantes jogando futebol. Vi Mila, jovem estreante, sensual, e Paula Peixoto, que girava os braços alucinada. Cada uma tinha um estilo na passarela. Mas precisava responder às perguntas do doutor Kiko.
Que medicamentos toma?
Alguma cirurgia?
Alguém na família teve problemas de coração?
E eu vendo sentada, à beira da água, a Ileana, alta, sorridente, e o velho professor de natação, um japonês com mais de 80 anos, patrimônio da Atlética, e alunos e alunas de uniformes brancos, indo para os vestiários se trocar. E Mariana Ramos, filho do escritor Ricardo Ramos, musa da Atlética.
Pergunto agora: Kiko, respondi a tudo? Passei?
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