segunda-feira, maio 07, 2012

A trajetória de um pária - LEE SIEGEL


O Estado de S.Paulo - 07/05/12


"O coração solidário está quebrado", disse D.H. Lawrence num de seus frequentes rompantes apocalípticos. "Nosso odor incomoda as narinas do próximo." Ao observar a contínua crucificação pública de John Edwards, ex-senador americano e antigo postulante a candidato presidencial, concluo que Lawrence tinha razão.

Como praticamente todos os habitantes do planeta já sabem a esta altura, Edwards teve a vida e a carreira política destruídas ao admitir em 2010 que estava mantendo um caso pré-nupcial com uma mulher chamada Rielle Hunter. Mais detalhes vieram à tona: Edwards teve um filho com ela; pediu a um assessor de campanha chamado Andrew Young que assumisse a paternidade da criança; sua mulher, Elizabeth Edwards, sabia do affair e mentiu para acobertar a situação; Edwards usou quase US$ 1 milhão em recursos doados por dois eleitores ricos à sua campanha para sustentar Rielle e o bebê, e para ocultar toda a sordidez do episódio.

É esse último fato que está agora prolongando o tormento público de Edwards. Os promotores federais dizem que, ao usar o dinheiro doado para sustentar Rielle e a criança, ele violou as leis das campanhas eleitorais. Foram apresentadas contra Edwards seis denúncias de crime qualificado, incluindo a prestação de declarações falsas e conspiração. O julgamento teve início no dia 23 de abril e traz depoimentos envolvendo vídeos caseiros de sexo, traição e subterfúgio, bem como as recorrentes lágrimas da mulher de Andrew Young e da filha de Edwards. Se for condenado, o ex-senador pode passar 30 anos na prisão, além de ser obrigado a pagar multa de US$ 1,5 milhão.

A desonestidade é inaceitável nos membros do governo. Pela escolha errada que fez, Edwards teve o que mereceu. Perdeu a licença para advogar, viu a carreira política ser destruída e seu nome ser manchado para sempre. Apesar de todos os seus elos com os poderosos, ele é agora um pária.

Repito: Edwards teve o que mereceu. Mas ele não merece o castigo que continua a receber. Sua ridicularização pública prova que a cultura do escândalo chegou longe demais. Ela se converteu numa espécie de pornografia. As pessoas não param de se perguntar por que Edwards, com tanto a perder, arriscaria tudo em nome de sua obsessão por Rielle. A resposta é fácil. Elas deveriam se perguntar por que, com tanta coisa ocorrendo atualmente nos Estados Unidos e nas suas próprias vidas, elas insistem na sua obsessão por Edwards.

O fascínio pelos detalhes mais chocantes da vida de Edwards eclipsou a intensidade que os trágicos detalhes da vida dele conferiram aos seus impulsos inconscientes. Ele perdeu o filho adolescente num acidente de carro em 1996. Depois disso, Edwards tornou-se um bem-sucedido advogado especializado em defender vítimas de delitos civis, obtendo grandes indenizações para pessoas que com frequência tinham sofrido por conta da conduta ilegal de corporações irresponsáveis. Tornou-se rico, mas o fez à custa daqueles que abusaram do poder, e não dos abusados e impotentes. Como senador americano, ele foi um valoroso e enérgico defensor dos pobres e desfavorecidos.

Quando a mulher dele, Elizabeth Edwards, teve câncer diagnosticado em 2004, é fácil enxergar o efeito que isso teve sobre o marido. A morte tinha novamente entrado em suas vidas. Ele foi jogado de volta à época em o casal perdeu o filho, um episódio pelo qual ele talvez nunca tenha deixado de se culpar. Um caso secreto e ilícito com Rielle oferecia dois tipos diferentes de satisfação. Era uma maneira de escapar do trauma de vivenciar novamente a morte do filho. E continha a possibilidade de castigar Edwards pela morte do menino de uma vez por todas ao destruir completamente suas ambições políticas. Se em vez de metodista Edwards fosse católico, talvez ele tivesse encontrado uma forma mais saudável de penitência.

Será que estou sendo demasiadamente condescendente com Edwards? Creio que não. Se ele usou parte dos impostos que pago para aliviar sua profunda angústia particular e para financiar as despesas médicas durante a gravidez de Rielle e após o nascimento do bebê, não o critico por isso. Faz quase dez anos que os impostos pagos por mim são usados para financiar guerras no Iraque e no Afeganistão. Esse é o verdadeiro crime.

Os comentaristas políticos americanos têm gostado de estabelecer conexões entre as folias particulares de Edwards e as de Newt Gingrich, que admitiu episódios de infidelidade conjugal e chegou até a deixar uma das ex-mulheres para ficar com outra quando a primeira estava morrendo de câncer. Mas esse tipo de comparação superficial só revela uma falta de compreensão da humanidade. Não é preciso ser Sigmund Freud para imaginar que Gingrich foi motivado por uma intoxicante mistura de narcisismo e desejo, enquanto a motivação de Edwards teria sido o trauma e a necessidade de infligir a si mesmo um pesado castigo. Condenar Edwards a 30 anos de prisão seria como levar à cadeira elétrica uma pessoa que urinou nos próprios sapatos em público.

Ainda assim, o julgamento prossegue, os promotores cuidam das próprias carreiras, a mídia vende espaço à publicidade e o público desfruta revelações, como a que foi feita na semana passada - já publicada num livro -, segundo a qual Elizabeth Edwards, ao descobrir o caso de John com Rielle, teria arrancado a própria blusa no terminal de um aeroporto e mostrado a ele as cicatrizes de sua mastectomia. Elizabeth, morta em 2010, pôde ao menos ser poupada desta orgia seguinte de humilhação pública.

O coração solidário está quebrado. Nosso odor incomoda as narinas do próximo.

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